terça-feira, 13 de agosto de 2013

A propósito das “Selvagens”

Certo dia já não me lembro a que propósito, Henrique Barrilaro Ruas (1921-2003), cujo décimo aniversário sobre a sua morte decorre este ano, disse-me mais ou menos o seguinte: “As Ilhas Selvagens não são mencionadas no texto constitucional português para não melindrar Espanha”. Na Constituição de 1976, o território nacional é assim definido: “Portugal abrange o território historicamente definido no continente europeu e os arquipélagos dos Açores e da Madeira”. Embora tenha havido várias propostas nas sucessivas revisões constitucionais para incluir a menção às referidas ilhas, o tema nunca passou das discussões parlamentares. Por sinal, são a única parcela de território português que se encontra fora das FIRs (Regiões de Informação de Voo) de Lisboa e de Santa Maria, bem como fora da responsabilidade dos Centros de Busca e Salvamento (Convenção SAR – International Convention on Maritime Search and Rescue) de Lisboa e de Ponta Delgada, estando sob o controlo das respectivas autoridades espanholas (Canárias).

As Ilhas Selvagens ganham importância estratégica em termos da Zona Económica Exclusiva (ZEE) de Portugal, a maior da União Europeia, com 1,6 milhões de quilómetros quadrados. Espanha não aceita a soberania portuguesa e pretende que sejam reconhecidas internacionalmente como meros “rochedos” ou “ilhéus” para que não sejam consideradas na definição da ZEE. Conforme a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, enquanto "rochedo", o Estado tem direito a 12 milhas do mar territorial e a uma zona contígua até às 24 milhas, enquanto "ilhas" tem direito a uma ZEE que pode ir até às 200 milhas. Esta situação tem sido um engulho diplomático entre os dois países ibéricos nas negociações em curso sobre a Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental que terminam em 2016.

O desprezo espanhol pela soberania portuguesa chega, por vezes, a “vias de facto”: em setembro de 1911, o Governo de Castela comunicou a Portugal que deliberara incorporar as Selvagens nas Canárias mas, em 1938, a Comissão Permanente de Direito Marítimo Internacional confirmou a soberania portuguesa. Em 1972, foram apreendidas duas embarcações espanholas que faziam pesca ilegal; três anos depois, foi hasteada a bandeira espanhola na Deserta Grande; em 1996, um helicóptero da Força Aérea espanhola aterrou na Selvagem Grande; no ano seguinte, foram registados voos rasantes de aviões militares espanhóis sobre a Reserva Natural.

As “Selvagens”, descobertas oficialmente no século XV (1438) pelo navegador Diogo Gomes, são um conjunto de ilhas integrantes do arquipélago da Madeira. Constituído pela Selvagem Grande, Selvagem Pequena, Ilhéu de Fora e ilhéus adjacentes, este território cobre cerca de 9.455 hectares e são consideradas um "santuário" de nidificação de aves marinhas em particular da cagarra, calcamar, alma-negra e roque-de-castro. O pretexto oficial da visita do Presidente da República, Cavaco Silva, é a comemoração do 50.º aniversário da primeira expedição científica às ilhas, realizada pelo ornitólogo Paul Alexander Zino, e que levou à identificação, em 1971, da mais antiga reserva natural do País, gerida pelo Parque Natural da Madeira (PNM). Aliás, os seus únicos habitantes são os vigilantes do PNM, substituídos de três em três semanas. Nessa altura, é também feita a recolha postal que assinala a administração portuguesa. Um marco dos Correios (instalado em 2003) é utilizado por coleccionadores de selos, cuja correspondência é carimbada e enviada daquele “serviço”, utilizado também por turistas e tripulações de veleiros. Para além destes visitantes, apenas existe uma casa particular pertence de Francis Zino, do Funchal.

Apesar das reticências dos parlamentares portugueses em mencionar as Ilhas Selvagens no texto constitucional, em Maio de 2009, o ex-presidente da Assembleia da República, Jaime Gama, promoveu uma visita de deputados. No ano anterior, foi a vez do Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), Almirante Melo Gomes (2008).

Maior relevância tiveram os presidentes da República que rumaram àquelas paragens: Mário Soares (1991) que, bem ao seu estilo, foi a “banhos” e Jorge Sampaio (2003), mais circunspecto, instalou o tal marco dos Correios que faz as delícias dos visitantes do PNM. Cavaco Silva é o primeiro presidente da República a pernoitar naquela parcela de território nacional, transformando-a na “sede” do Estado. A iniciativa de Cavaco Silva é, sobretudo, uma missão de afirmação de soberania, a que já não estamos habituados nos tempos de hoje.