terça-feira, 1 de julho de 2014

Ainda António Quadros e Miguel Torga

Apesar do silêncio público de Miguel Torga sobre os escritores, filósofos e poetas da Escola de Filosofia Portuguesa, o certo é os conhecia e tinha-os em boa conta. Na verdade, Torga era visita nocturna e diária de uma biblioteca, na qual os autores da filosofia portuguesa tinham lugar próprio e destaque. N'"A Criação do Mundo", o escritor revela "simplesmente, batia a uma porta que se abria a ranger" acedia a um "sótão forrado de livros e povoado de rituais". Já anteriormente, no XII volume do "Diário", Torga referindo-se à mesma biblioteca, escrevera: "Arruma Portugal numa estante". E o Portugal que se alinhava não eram só os "guias dos seus monumentos e das suas estradas, crónicas, rifoneiros, monografias etnográficas, álbuns de cerâmica e de mobiliário", "salvados do naufrágio" da Pátria a que se assistia em 1976, que aliás não tinham esta intenção, mas também todos os autores da Escola de Filosofia Portuguesa. Nós próprios, nesta biblioteca, nos iniciámos na tradição filosófica, depois de passarmos pelo existencialismo francês e alemão.

Entre as lombadas visíveis, e bem visíveis, constavam as de António Quadros. Torga para além de os consultar na biblioteca, também os lia e comentava por vezes.
 
A troca de correspondência entre os dois intelectuais mostra que existia uma admiração mútua, apesar do "complexo de esquerda" que Torga por vezes denotava e o fazia calar o que lhe ia na alma. Em carta dirigida a Quadros, Miguel Torga escreve a 1 de Maio de 1987, a propósito de "Portugal, Razão e Mistério": "Foi uma bela empresa a que meteu ombros, esta de procurar, e conseguir, abrir-nos os olhos para a evidência de um Portugal oculto, que todos, sem darmos conta, trazemos na memória e na imaginação. Cá fico, com água na boca, à espera do terceiro volume da série".

Mais tarde, a 16 de Março de 1989, sobre "A Ideia de Portugal na Literatura Portuguesa dos Últimos Cem Anos": "Li-o com o alvoroço que pode calcular, e felicito-o sinceramente por um trabalho que passa a ser consulta indispensável para quem deseja conhecer o que pensaram e disseram da nossa pátria gerações sucessivas. Se nem sempre pude estar de acordo cm alguns pontos de vista e juízos estéticos nela formulados, e se preferisse um texto mais preciso e menos repetitivo, percorri, contudo, gratamente o restante espaço da obra, rendido à lucidez que a ilumina". Falta dizer que Torga agradece as "palavras de solidariedade" que Quadros lhe dava notícia desde o Brasil.

"traço de união" entre Miguel Torga e António Quadros era a idealidade patriótica, a portugalidade se quisermos, talvez mais próximo do sentimento no primeiro; talvez mais direcionado para o espírito no segundo.