sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Luanda - Igreja de Nossa Senhora da Nazaré

Quem vem da marginal de Luanda e se dirige ao Largo do Ambiente poderá ver à sua esquerda  a discreta Igreja de Nossa Senhora da Nazaré. Construída em 1664, é a mais antiga de Luanda e, para muitos, a mais carismática. O templo era um lugar de peregrinação para os “caluenses” (gentes do mar). Monumento nacional, a igreja é conhecida pelos seus belos painéis de azulejos e pela “santa negra”, Santa Ifigénia da Etiópia.
A madre Catarina, senhora de rosto vivido, olhar alegre e sorriso aberto, afirma-nos que a veneração a Nossa Senhora da Nazaré — Mama Nasi como é conhecida entre os crentes — tem aspectos miraculosos que nunca reconheceu noutros cultos à Virgem Mãe, seja em Fátima (Portugal) ou Guadalupe (México).
Longe vão os tempos em que o templo era banhado pelas águas da baía. Hoje, totalmente em terra firme e vários metros do mar, mantém-se como um refúgio espiritual da cidade. “À Mama recorrem pessoas com e sem fé, de várias confissões religiosas. Até os maldosos chegam a visitar-nos antes de cometerem o crime”, refere a madre divertida. “Nossa Senhora da Aflição”, “Nossa Senhora da Fecundidade”, são outros nomes que os crentes adoptam conforme o problema que apresentam à virgem. “Há também os que a Ela recorrem por causa dos negócios”, diz-
-nos lembrando-se de que está a falar para a Exame Angola.

domingo, 15 de dezembro de 2013

Orlando Vitorino: Pai eterno

O texto que dou a ler hoje é um testemunho emocional sobre o meu Mestre, o filósofo Orlando Vitorino.

Corre hoje o décimo aniversário sobre o falecimento de Orlando Vitorino (1922-2003), um dos mais decisivos filósofos portugueses do século passado. Com ele, convivi desde a idade da dor numa relação de cúmplice, amigo e discípulo. Das conversas iniciais, lembro as suas palavras quando nos olhámos: “vamos fazer uma revista juntos!”, disse para minha perplexidade. Mais tarde, envolvi-me na "Escola Formal", dirigida por Orlando e Afonso Botelho, e o filósofo foi presença constante e importante em todas as minhas iniciativas editoriais. O dizer de Orlando assinalou o nosso encontro, talvez porque seria parecido a um outro, de Rolão Preto que, já velho e acompanhado pelo fantasma da morte, observou-me mais ou menos o mesmo.

Com Orlando vivi intensamente o deslumbramento da inteligência, da genialidade e da luz. Um convívio, por alguns períodos diário, que marcou a idade da aprendizagem e acabou por influenciar a minha personalidade, também enquanto homem de espírito e escritor. Foi este filósofo que me introduziu na tertúlia de Álvaro Ribeiro e na Escola de Filosofia Portuguesa.

Era uma personalidade fascinante e admirava-o profundamente. Era um “Pai”, que muitos dos amigos e conhecidos pensavam ser de sangue. Neste passo, os termos “Padre” e “Pátria” emergem na evocação. Através de Orlando, amava todo o saber do mundo e, nesta livre adesão, se foi formando a minha alma. Na admiração e no entusiasmo nem me dava conta da mortalidade do homem: na verdade, a morte não era coisa para um filósofo que tudo fazia depender do logos na forma demonstrativa e, por isso, sedutor para as outras inteligências. Ficou na memória, o momento em que percebi que Orlando era um comum mortal e que também se enganava: o primeiro, em Coimbra, quando se desequilibrou numa armadilha da calçada escorregadia da velha cidade; a segunda, quando interrogou uma frase sugerida pelo filósofo e que, prestes, introduzi num texto de minha autoria. Quanto à primeira surpresa, hoje continuo a pensar que a sua alma é imortal. Todos morremos? Talvez nem todos se submetam a essa certeza, enquanto a memória e o seu excesso forem  Vida e se inteligir a verdade patente na comunicação entre espíritos e pessoas. Quanto ao segundo momento, aprendi a lição: a adesão ao que o Mestre sabe não pode nem deve obstruir a inteligência.

Orlando transmitiu-me o amor à verdade, ao espírito e à liberdade. Sempre lembrava que a sabedoria que nele radicava era a de uma tradição, sustentada na teoria da verdade de José Marinho e na doutrina do espírito de Álvaro Ribeiro. O ideal da liberdade esteve sempre presente nos seus ensinamentos. Para Orlando, como para os seus mestres, a Escola de Filosofia Portuguesa não é lugar de cultura, nem enciclopédico, mas sim onde cada um nós, através do exercício autognósico nos sabíamos ignorantes da verdade que, entretanto, já imaginávamos unívoca. A tertúlia é um sítio de ignorância e esperança. Ao jeito dos miúdos, através da ignorância espreitávamos a verdade ou, noutros termos, pela sombra que nos protegia da cegueira, caminhávamos para a luz. O método da Escola de Filosofia Portuguesa é esotérico, mas patente, radiante e luminoso. Tudo o resto são momentos que se tornarão substanciais, e talvez enganadores, se o ser não for tão só a verdade que é.
Orlando era um pensador de inteligência principial e tudo fazia depender de dedução e demonstração firmados no espírito. Os amantes do espírito assumem este aspecto: o logos é enunciado de forma tão inteligente que parece fácil, quase tanto quanto a pressa em classificá-lo de “racionalista” ao modo vulgar da cultura oficial e segundo os ditames da filosofia moderna ou triunfante. Orlando Vitorino é um místico que tem a luz da teologia e, se quisermos, da gnose cristã.

Na sua geração, foi talvez o que mais concretizou a expressão da filosofia portuguesa em diversos domínios da vida social. Teve realização política, como a campanha presidencial que realizámos em 1986, na qual propúnhamos ideias, hoje cada vez mais actuais e necessárias à felicidade dos portugueses (Orlando deixou-nos o relato desta aventura em “O processo das presidenciais 86”).

A visão dos princípios e o inteligente pensar emprestavam-lhe um carácter apolíneo, segundo uns; radical, na opinião de outros. Não obstante, a coerência, por vezes telúrica, de um sistema de noções, teses e ideias que expôs para a Escola de Filosofia Portuguesa, sempre foi sedutora. Para além da teologia cristã, as suas deduções políticas em tempos outonais da Pátria, fizeram-no percorrer caminho dos solitários. Na vida e na morte, como tem sido patente até aos nossos dias.

Para além de “Refutação da Filosofia Triunfante”, que o autor considerava uma arma, e a “Exaltação da Filosofia Derrotada”, Orlando escreveu “As Teses da Filosofia Portuguesa”, obra que, por alguma razão obscura, não é publicada. Entretanto, deixou-nos alguns escritos decisivos, como “Notas sobre a degradação do Espírito”, “A Teoria da Verdade de José Marinho”,  “A Doutrina do Espírito de Álvaro Ribeiro”, “Ensaio sobre o que é o pensamento” ou “O pensamento é o homem”. Não podemos ainda esquecer numerosos textos sobre estética. Neste domínio, surge o pseudónimo Ernesto Palma, um homem de teatro, que assinou um acervo sobre doutrina teatral, cuja importância é ainda hoje desatendida.

 

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Nótulas em defesa da Escola de Filosofia Portuguesa

Escola, em tradicional significado, é o lugar de ócio, da conversa inútil para os ditames do negócio. Advém a palavra de skholé que se refere à folga e ao descanso. A escola propicia a livre expressão do espírito, sem embargo das finalidades utilitárias, sociais ou económicas. O inútil discurso e a vadia conversa resultaram no entendimento segundo o qual escola é o lugar onde se estuda. Diríamos, o lugar onde se pensa, atendendo a que a liberdade reside no pensamento e que, afastado do negócio, o pensar deriva da verdade e tende para a verdade.

Este significado é o que mais convém à filosofia portuguesa. A tertúlia é a escola e o lugar do filosofar, longe do ócio e da cultura. Para Álvaro Ribeiro, o teorizador da filosofia portuguesa, o convívio assegura a transmissão esotérica da tradição. Segundo o filósofo, tradição é a palavra, cujos significados são desenvolvidos e transmitidos de pessoa a pessoa ou, se quisermos, de espírito a espírito. Lembramos também, José Marinho: “Não há filosofia sem ideias viventes e as ideias viventes estão nos homens viventes ou nos que, tendo passado da face do mundo, vivem ainda”.

O ambiente tertuliar é esotérico de vários modos, dos quais um dos mais decisivos é o que se associa à transmissão da palavra ou da tradição que organiza o pensar. O convívio e, não raras vezes, o simpósio, são formas escolares da arte de pensar, a filosofia.

domingo, 3 de novembro de 2013

Curto diálogo com Walmor Grade

Walmor Grade: Caro Francisco, boa noite! Acabei de ler o teu artigo Homem: "animal racional" ou "razão animada"? Como sou um simples leitor curioso (não sou escritor, jornalista ou filósofo), confesso que minha superficialidade não permitiu que captasse a essência ali contida, talvez pela linguagem mais filosófica utilizada. Não sei se estou no caminho correto, mas estarias querendo dizer que a evolução referida por Aristóteles seria no sentido da purificação (ou santificação e consequente libertação) da alma que anima o homem, único ser vivo com esta possibilidade, por causa de sua racionalidade? Imaginei ser esta a tua ideia, mesmo porque parece confirmar que tal evolução se diferenciaria dos conceitos do Espiritismo e do Darwinismo. Se eu estiver raciocinando corretamente, dirias que a incorruptibilidade dos corpos de alguns santos seria já quase uma “demonstração com argumentos da observação”, neste caso? Agradeço a compreensão e a atenção que puderes  conceder.  Grande abraço

Francisco Moraes Sarmento: Caro Walmor, agradeço o seu comentário. Primeiro uma justificação: demoro a comentar , uma característica própria que não significa desprezo pelo meu interlocutor.  O pensamento não pressa e, reconheço também, sou um discípulo preguiçoso de Hermes. Preguiçoso, mas atento.
Quanto ao que escreve: parece-me correcto e penso que estejamos em concordância no geral. O homem aperfeiçoa-se e a condição desse movimento é conhecer-se enquanto espírito. Na filosofia portuguesa, a vida é teleológica e simboliza o regresso ao paraíso. O homem, composto de corpo, alma e espírito, é um ser que evolui. O evolucionismo encerra-se na antropologia e não transgride para a cosmologia (vertendo-se num transformismo) e para a teologia (tornando-se numa espécie de antropocentrismo). A palavra é um acto de razão e só conhecemos ou tem existência o que emerge através da palavra. A racionalidade, e não a razão raciocinante, é uma tendência para a perfeição ou para utilizar a suas palavras poderá ser uma purificação ou santificação. Mas ao utilizar estas expressões apelamos, ainda que não seja nossa intenção, para uma cisão e uma separatividade que coisificada poderá obstruir à visão unívoca da verdade. Do ponto de vista antropológico, a morte é uma mudança de estado, a que a teologia dará significado.
Na citação que faço do filósofo português, penso que não estaria a focalizar-se na questão da “incorruptibilidade dos corpos de alguns santos”. Poderá ser esta incorruptibilidade uma manifestação do aperfeiçoamento da razão (ou nos seus termos, da purificação ou santificação)? Quanto a esta questão não saberei responder.
Termino, agradecendo novamente o seu comentário e esperando continuar o nosso diálogo. Um abraço. Francisco

Walmor Grade: Salvé, Francisco! Gostei muito do seu pensamento. Vc diz agora:  “A palavra é um acto de razão e só conhecemos ou tem existência o que emerge através da palavra.” E também usa o termo “visão unívoca”, que acabo de ver também numa explicação do Prof Olavo de Carvalho, ao falar sobre a linguagem humana num contexto bastante aproximado, aqui. Gostei bastante de ambas as colocações. Abraços.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

"Madalena, fragmentos de um romance": o livro como acto mágico, por Cynthia Guimarães Taveira

A pedido de Francisco Moraes Sarmento, pedido surpreendente vindo de um mundo estranhamente mudo aqui deixo algumas linhas sobre o seu romance: “Madalena, fragmentos de um romance”.

Os romances e ainda assim, mesmo que sejam apenas romances, são tentativas da escrita do destino de alguém. No entanto, acabam por fazer parte do destino do leitor.
Será o amor uma gigantesca sugestão? Serão as sugestões consistentes?

Colocarei aqui de parte a mulher como imagem desvirtuada de qualquer coisa que não seja a passividade que lhe está reservada necessária para o reflexo do Espírito Santo, equivalente, aí, às crianças, como imagem de pureza tal, que bastando a presença como testemunha/reflexo da realidade apresentada, é o suficiente para que possa fazer afirmações surpreendentes e, muitas vezes, simples, tão próximas se situam do Espírito Santo que por elas sopra e assim resolvendo dúvidas, em simples constatações, como ajuda angelical, apaziguando em consolos simples, próximos do céu, em espontaneidade pura, entrega genuína.

Os encontros levantam dúvidas, não porque o outro seja espelho nosso, mas dúvida nossa, curiosidade nossa. Bruno encontra Madalena e tenta resolver-se, ir mais fundo ao encontro de si. Para isso ficciona um destino procurando inventá-la nesse destino. É uma “anima” criada numa tentativa de fusão dos tempos. Mas Madalena está estranhamente ausente deste livro. O que temos é todo um conjunto de visões que ele tem dela e de si próprio. A voz dela não está lá. Voz verdadeira dela não se encontra. Existe apenas um destino urgentemente inventado, um beijo urgentemente criado, ilusório como as imagens do mundo. Aquilo que Bruno oferece é a sua própria ficção e tenta que ela entre na sua própria ficção. O livro como acto mágico. Do outro lado, ela na realidade, por vezes, mágica também. Nunca se encontram ele e ela. Nunca ouvimos as duas vozes neste livro. Nem fora dele. Encontram-se apenas numa espécie de espaço imaginado, numa nostalgia dolorosa feita, também ela, de imagens-desejos ilusórios. Ele é matéria verbal. Ela matéria reservada pelo tempo e seus mistérios. Ela deu-lhe a possibilidade de se re-descobrir, em parte, no que escreve, e aqui, a escrita como demanda. Ele era o Verbo criador dela. Ela o Verbo criado por ele. O beijo está fora do livro. Porque ele é quando o Verbo se torna Ser. Um beijo não é ficção. É quando já não há teoria do amor. Só amor.

(13-10-2013)
Cynthia Guimarães Taveira

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sábado, 12 de outubro de 2013

"Madalena, fragmentos de um romance" disponivel em suporte digital

"Madalena, fragmentos de um romance" de C. Bruno está disponível em suporte digital. Preço: 5 euros. Poderá adquirir a obra fazendo o pagamento por transferência bancária ou através de Paypal.

Banco: MillenniumBCP
Titular: Francisco Manuel Bruno C B Sarmento
Para transferências nacionais (NIB):      0033 0000 45358924952 05
Para transferências internacionais (IBAN):    PT50 0033 0000 4535 8924 9520 5
Deverá enviar comprovativo da transferência para o e-mail francisco_m_sarmento@hotmail.com
Após confirmação da transferência o ficheiro PDF é enviado para o remetente

Se pretender fazer o pagamento através do Paypal deverá enviar um e-mail para francisco_m_sarmento@hotmail.com

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Conversas de tertúlia - Já será tempo de conversar sobre José Marinho?

Tertúlia em Miraflores, Janeiro de 2012. Participaram no diálogo Luis Furtado (LF), João Seabra Botelho (JSB) e Francisco Moraes Sarmento (FMS).


Num inverno invulgarmente soalheiro, a tarde aprazível convida a um passeio. Alguém interrompe o silêncio:

JSB – Meu caros, terminou há dias o ano em que se completou o cinquentenário da publicação da «Teoria do Ser e da Verdade». Uma vez que as vozes institucionais já fizeram as homenagens que tinham a fazer, o Marinho está outra vez disponível para conversar connosco...

FMS – Não esteve disponível porque estava ocupado a participar nas homenagens, ou porque andava a fugir delas?
(risos)

LF – Bem, então faço a pergunta que ele nos fazia, quando chegava à tertúlia: “Temos conversa?”

FMS – Temos, sempre!... Tenho andado a ler S. Tomás de Aquino e, por estranho que pareça, fui parar a Marinho. Hoje, estou em dizer que o conceito de insubstancial substante é um conceito inspirado por Aquino. E tomando em atenção as teses de Aquino, acabei por concluir que José Marinho é    aristotélico.

LF – Em que sentido?

FMS – Bem, é a leitura de Aquino que me permite entender o insubstancial substante sem decair nas muitas leituras que, infelizmente, andam por aí, e que tentam empurrar Marinho para uma tradição céptica e nihilista.

LF – Para mim, o conceito de insubstancial substante resulta de uma equivocidade que está no próprio fundamento do pensamento humano. O acto de pensar nunca se cansa de si mesmo, porque o pensamento sempre se recria, principalmente quando tem sobre sua égide a própria mente divina. O insubstancial substante, portanto, em todos os momentos morre, e em todos os momentos renasce de si-mesmo. No renascer está precisamente a sua substancialidade, afirmada no pensamento, já que este nunca se contradiz a si-mesmo como realidade, como essência de si.
Mas eis agora a perspectiva do homem, que é a perspectiva de J. Marinho. Marinho é um homem de perplexidades, que se vê perante a alta missão do seu pensamento, que reconhece o alto grau que esse mesmo pensamento pede para a reflexão sobre si-próprio. E esse pensamento, na pureza de si-mesmo, porque está alto, porque deseja contemplar a verdade e o ser da verdade, apenas encontra como reflexo a própria natureza humana. E o que é que lhe diz a natureza humana? Diz-lhe que o infinito ser sempre se nega - nega-se em todas as substâncias criadas; mas também persiste, porque permanece sempre como poder de afirmação.

FMS – Pois o que me surpreendeu, foi a dissolução do equívoco... A expressão insubstancial substante, que aparenta ser intrinsecamente equívoca, segundo uma interpretação aristotélica de S.Tomás, deixa de o ser. Perceberá isto quem se lembrar dos argumentos de S.Tomás que conciliam a tese da eternidade do mundo e a existência de um Deus Criador.

LF- Bem, quanto a mim há, realmente, uma equivocidade! No entanto, é certo que, no insubstancial, sempre a preposição apela ao substante... O substante é o fundamento, que o pensamento continua indefinidamente a procurar, porque o pensamento não tem posssibilidade de se contrariar, mesmo na negação, pois até na negação se reconhece, quanto mais não seja como fundamento de si-mesmo.

FMS- Isso é pedagógico...

LF- Não, não é apenas isso. O ser tem de negar-se para se afirmar.

FMS – A negação não é necessária à afirmação do ser. A negação é sempre provisória...

JSB – Creio que essa seria a tese de Álvaro e, nisso, discordaram os dois Amigos. A tese de José Marinho, quanto a mim, não é essa. Em Marinho, a cisão é irrefragável! Não há humana afirmação de ser que dela, cisão, seja imaculada; o não-ser, não sendo o que é, como que assiste o que é, a ser. Eis o enigma fundamental que, segundo Marinho, move todo o filosofar.

LF – Sim, e Marinho teve a virtude de levar toda a problemática da filosofia, da filosofia em geral e não apenas portuguesa, para este tema axial. E poucos o entendem. E embora seja um autor de relevância mundial, é intraduzível; a sua escrita é inevitavelmente hermética, não suporta tradução. Há uma cisão extrema, e a cisão extrema explica necessáriamente um eleatismo de tipo metafísico. Nós temos a nossa velocidade própria de pensamento, potencialmente infinita, e viajamos dentro de nós por mundos infinitos, dentro dos quais nos sentimos concêntricos, como se fôssemos senhores mas , bem no fundo, estamos a alargar as nossas cavernas, ou seja, os nossos possíveis céus.
No contexto da Terra, alargamos os nossos horizontes. E por isso as viagens dos homens adquirem vários significados, porque o homem pode navegar infinitamente, através de vários mundos. A cisão extrema, para Marinho, é pressupor que, no fim de tudo, na grande finalização teleológica da História dos Mundos e do Ser em relação a esses Mundos, mais uma vez, perante o infinito inesgotável, o que o homem pode conceber, ou a realidade que o homem pode usufruir, é sempre separada. A cisão extrema fala-nos, e impõe-nos, autoritáriamente, que há sempre algo finito que para nós serve, mas, no fundo, que está perante o infinito inconcluido. A cisão extrema é para além dos homens e das circunstâncias que os envolvem na sua própria evolução.
Sob o ponto de vista antropológico, partindo do princípio que há um fim teleológico do homem nesta dimensão espacio-temporal, há sempre uma cisão extrema, porque Deus, como diria Pessoa, é sempre para além da ogiva, o grande ser acima de tudo, acima de todos os anseios, acima de todas as nossas especulações – e ainda bem! Sem isso, a nossa existência na Terra poderia ser programada por etapas, poderia ser mais ou menos definida e orientada, e não haveria algo, para além de tudo, perante o qual nós sentíssemos que o mistério da existência tivesse solução possível.

FMS – A autognose é concêntrica? Na autognose o homem não se conhece apenas a si mesmo... Na autognose conhecemo-nos a nós, e a todo o Mundo!!!Não há, por isso, redenção do mundo sem salvação do Homem, por muito que isso custe aos ecologistas e aos amigos dos animais da nossa praça! E, já agora, eu diria que só temos cisão na Criação... Perante a eternidade do mundo, o que é a cisão? Aliás, para mim a cisão é uma noção teológica, embora todos andem a tratá-la como se fosse uma noção antropológica.

JSB- Caro Francisco, parece-me que quererá dizer que o Mundo é perpétuo, não eterno. A eternidade, como sabe, está fora do tempo e da sucessão dos momentos, e o Mundo não o está, certamente... A tese de Aquino, creio, é a da perpetuidade. Quanto à cisão extrema, como lhe chama Marinho, ela é apresentada quase como se fosse um atributo divino; mas se Marinho não carece da inteligência que permite aos homens não limitar ou antropoformizar o Divino, ao dizer que a cisão seja em Deus, terá de dizer que essa cisão é para nós, e não para Ele; e é por ela ser para nós, que a autognose de cada um não poderá abarcar nem uma só gota do que está para além de cada um; no entanto, não haverá nenhum limite ao que a graça Divina queira dar a conhecer a cada um... Mas isso, já será sófico e misterioso, está, julgo, para lá da autognose enquanto tal...

LF- A autognose é sempre concêntrica em nós. E excêntrica em relação a Deus. É a graça que ultrapassa os Mundos e as dimensões que temos como referências relativamente ao nosso espaço e ao nosso tempo. Pensamos que o milagre não existe... Pensamos até, embora não acreditemos, que é impossível uma comunicação, mas o beneficio da graça é algo que nós recebemos para além de todo o espaço e de todo o tempo. Isto foi uma das heranças que recebi, não só das leituras de Leonardo Coimbra, com também da mestria do Álvaro Ribeiro. A gnose, repito, como algo do conhecimento que nos é dado, e que para nós serve como semente de evolução e como ascensão para a nossa possível realização interna, é algo que em nós se opera, em nós se confirma, em nós se dilata, abrangendo, por si-mesma, tudo o resto, que no fundo é a realidade, realidade essa a que chamamos mundo. Não tenhamos o receio de sermos mónadas!

FMS – Se eu fosse a ave metafisica do Sant'Ana Dionísio diria que na autognose todo o homem se sente divino.

JSB – E esses momentos, como talvez Marinho lembrasse agora, não são, na autognose, o entusiamo que caminha sempre a par e passo com o lamento de Cristo: ”Pai, Pai, porque me abandonaste”? Nenhuma monada subsiste apenas da sua harmonia interna! Mas talvez, quem sabe, essa harmonia seja já em si suficiente para fazer voar a ave metafísica...

LF-Porque é que a mónada é a configuração? Por que razão nos aparece como o ser infinito de Parménides, o ser concluso para o qual transferimos contradições, interrogações... O que interessa nas mónadas, na sua sua conclusividade que parece negar o infinito, não é a contradição do infinito. O infinito, para o ser humano é como um imenso oceano de reserva a partir do qual todas as finitudes se dispoêm nas suas múltiplas correspondências e nas suas especiais simpatias. Mundos diferentes sim, mas conclusos na sua harmonia, sabendo nós que essa harmonia faz parte dessa outra harmonia geral que é aquela que nos movimenta o espírito e que ao mesmo tempo faz com que tudo o que pensamos possa ser concebido. Verdadeiramente, não há conceitos singulares que por esta génese não sejam universais. E que por esta luz interna, fogo activo, não se torne propriedade comum universal de tudo o que é o nosso conceber. Os conceitos a priori serão sintéticos? Nós pensamos que todos os conceitos serão gerados em nós porque fazemos parte da universal geração de tudo o que é o nosso conceber. Presumo que não é nas ciências evolucionistas que está a geração de toda as coisas. Nem estas ciências tem ainda a atitude firme de receberem em seu seio aquilo que é o movimento evolucionista do mundo! Mas há no espírito humano como que um polo de referenciação que vai distinguir aquilo que é o nosso conceber. Neste caso, concebemos pelo espírito. Por isso mesmo concebemos para as ideias e isto sustenta em nós uma perspectiva abençoada e possivelmente transcendente de todos os mundos que possamos conceber.

Retirado de www.ofilosofo.com, dirigido por João Botelho

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Homem: "animal racional" ou "razão animada"?


"Razão animada" opõe-se a "animal racional", expressão que atribui substancialidade ao género animal, ao qual todos os outros se subordinam, vertendo na definição o que não é mais próprio nem essencial ao homem. Em harmonia com a classificação de Aristóteles, o termo animal e um género heterogéneo, pois as suas "diferenças serão especificamente distintas" em relação a outros géneros, enquanto "homem" predicado de "animal" terá as diferenças deste género e a ele se subordina.

Ora, verifica-se que o ser humano distingue-se pela sua racionalidade, ou seja, a alma humana diferencia-se pela razão. Logo, remata-se o nosso raciocínio pela superioridade conceptual da noção de homem segundo uma "razão animada", ou espírito animado. Diremos então: a espécie humana não existe.

Esta expressão assume, igualmente, importância para o estudo das ideias porque desenvolve o pensamento de Aristóteles, nos nossos dias degradado conforme as tendências do pensamento que perseguem finalidades perturbantes do entendimento virtual da "anima".

O conceito de Álvaro Ribeiro afasta-se das correntes naturalistas e positivistas que deturpam o que a expressão "animal racional" implica no pensamento aristotélico e, identificando a parte com o todo, acentuam o seu carácter biológico, que, sem deixar de estar patente na expressão realista do filosofo grego, não tem a conotação nem o objectivo inferior que lhe e aditado pelos naturalistas.

Avisa Álvaro Ribeiro: "O pensamento aristotélico está muito mais perto do que mais tarde se chamou evolucionismo, doutrina que se propõe demonstrar com argumentos da observação uma tese implícita nas superiores tradições religiosas. A ascensão do homem pela escala zoológica, se for provada por argumentos paleológicos, comprovara o cativeiro e a remissão, a queda resultante do pecado original, o que e muito diferente daquele evolucionismo que outrora foi divulgado para negar o criacionismo do Genesis".

"Razão animada" é já uma actualização da tradicional distinção aristotélica entre géneros heterogéneos e subordinados. Se, num aspecto, o conceito alvarino não implica "diferenças especificamente distintas", pois todos os seres possuem alma e, por conseguinte, deles se afirma que são almados; se observarmos que a razão e própria só do homem e de mais nenhum outro ser, constituindo essa a sua diferença específica; logo, julgamos justificada a não aplicação da referida classificação.

A diferença lógica e gramatical que se verifica no pensamento assinala de um modo mais verdadeiro a efectiva descontinuidade observável na realidade entre a animalidade e a humanidade.
 
In "Escola de Filosofia Portuguesa. Teoria e Doutrina. Ensaios Peripatéticos" (no prelo)

sábado, 5 de outubro de 2013

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Conversas descontraídas

 
Todas as semanas comento online um tema de literatura, política ou filosofia. Por vezes, serei acompanhado por outros autores. O tema que proponho neste curto video é a filosofia portuguesa e as filosofias nacionais. Podem deixar as Vossas sugestões na minha página do Facebook, ou aqui no blog, em comentário a esta mensagem.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

“Biscate” da nossa liberdade!

Todos nós, ficámos a saber, oficialmente, que a “economia não registada” (ENR), vulgo economia paralela, representa cerca de 26,7% do nosso PIB, confirmando uma tendência de crescimento. Segundo cálculos do Observatório de Economia e Gestão de Fraude (Obejef), da Faculdade de Economia do Porto, sem economia paralela, o PIB nacional teria ascendido a 209 mil milhões de euros em 2012. Aplicando uma taxa de imposto de 20% às actividades "ENR", o défice público seria negativo em 1,7% e, em percentagem do PIB, o valor ainda seria negativo, mas de apenas 0,85%. O índice universitário inclui a produção ilegal, a produção oculta (subdeclarada ou subterrânea), a produção informal, a produção para uso próprio (autoconsumo) e a produção subcoberta por deficiências da estatística. Por sectores, o maior peso da economia paralela verifica-se no comércio e serviços, segue-se a indústria e depois a agricultura.

Os responsáveis do "Obejef" logo deram o “mote” à comunicação social: a economia paralela é mais de metade do empréstimo da troika, como quem diz: o “biscate” é o culpado pela situação das contas públicas, numa atitude moralista muito própria do intervencionismo estatal. A verdade é que a situação das finanças públicas se deve à crescente intervenção do Estado na vida geral dos portugueses e que existe uma relação entre o crescimento do Estado e do intervencionismo estatal e o aumento da designada “economia paralela”. E não pode deixar de ser assim: o rendimento gerado por seis meses de trabalho de cada um de nós vai direitinho para os cofres do Estado, até ao proclamado “dia da liberdade” (4 de Junho). Em vez de dimensionar o Estado provocando, a prazo, o fim dos impostos directos, a ideia é ainda mais plenamente totalitária: acabar com a economia paralela para sustentar a intervenção Estatal. O crescimento dos impostos directos é uma imoralidade e uma injustiça que o Estado impõe a todos nós.

Actualmente, a economia paralela é uma forma de mercado livre e deveria ser entendida como uma realização do direito à desobediência civil, consignada na Constituição, dada a situação de escravo a que o Estado remete cada português.

Místico extraviado

“És um místico extraviado!”, atalha o João, companheiro de serão em casa do Ivo. A expressão, glosa uma ideia de José Marinho, sublinha a condição espiritual do pensamento filosófico, ganhou voz surpresa, espontânea e conclusiva, a rematar o diálogo.

Do rumo da conversa, são esparsas e imprecisas as vozes da memória. “Afinal, diz o Ivo que se juntara ao convívio, sempre procuras a expressão segura no conceito e estável nas teses e as tuas interrogações sempre assumiram cariz, digamos racionalista se não te ofenderes com o epíteto, agora espantas com a confissão de uma experiência mística!”


O olhar perspicaz do João, aliado a um humor inteligente e subtil, parecia querer dizer: “És um envergonhado!”, mas do que afirmou lembro mais ou menos isto: “Compreendo esse receio das palavras e da expressão! A experiência mística é algo incomunicável em si mesma, ou para utilizar, um termo leonardino, é experiêncial. É uma vivência única, individuada e solitária. A confissão pode ser entendida por muitos como partilha ou prova de crença num deus, profeta ou outro ente celeste, mas não deixa de ser uma emanação de antropocentrismo vergonhoso! A crença pode sugerir comunidade, comunidade de crentes, mas na sua perenidade é inviolável e incomunicável. O imenso equívoco que sentimos no que há de mais íntimo em nós é a demanda do mediador. A crença, que é dar realidade a algo, assiste à ciência, mas o que dela subsiste como experiência mística mantêm-se inviolável e não comunicável!”. Por momentos calou-se até dizer, entre dentes, e inseguro: “Não há ciência da experiência mística! Os iluminados... ” De novo volveu ao silêncio, mas já todos adivinhávamos o pensamento: “Os iluminados não têm vergonha de anunciar ao mundo o modo do convívio espiritual. Tratam os seres celestes por “tu”, sem recurso à alegoria, analogia ou metáfora. A superioridade que se atribuem e si próprios é um acto de soberba!”. Diria o João, gesticulando os braços. O silêncio foi interrompido pelo Ricardo, sempre mais atrevido e impaciente: “Tenho para mim, que a racionalidade revela sempre essa intimidade experiêncial. O pensamento, segundo os analíticos, ou a lógica, é a forma comunicável, ou se quisermos, visível, dessa experiência. Até os que se ficam pela razão raciocinante, ou o racionalismo ideológico, apresentam sinais da presença mística.”


“É interessante o que dizes”, interrompe o Ivo. “Não é Álvaro Ribeiro que define a palavra como acto de razão? E a razão como sendo o espírito humano (e assim sendo, não haverá distinção entre espírito no homem e espírito do homem!)? Todos acompanhávamos envolvidos o discorrer do Ivo e nem demos pela pausa que fez antes de concluir: “A ciência, saber mostrar por conceitos, não dispensa a experiência mística, porque se trata de uma expressão do espírito ou espiritual.”


Ricardo aproveitou a respiração do Ivo para rematar:”Toda a expressão, e toda a expressão é um acto de razão, revela sempre algo de místico e é uma forma de revelar, mostrar e esconder, o convívio do seu autor com os seres celestes?”


O Ivo, sempre de cigarro nos dedos, escutava, enquanto servia o vinho e cortava mais umas fatias de presunto. “É de Chaves?” inquire o João, enquanto compõe uma fatia no pão.


O diálogo derivou para as coisas gastronómicas. Os serões discorrem descontraídos em redor de pão e vinho. A conversa parecia ter perdido sentido do que mais importa, mas não deve ter sido exactamente assim. As memórias são difusas e o desvelar por palavras sem consistência periga a fidelidade da amizade aos confrades. Ainda soa no espírito de todos, a afirmação de Álvaro Ribeiro segundo a qual não se pode pensar sem acreditar em Deus para acentuar a necessidade da crença ao pensamento, à filosofia e à razão.


 

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Carta Aberta a Pinharanda Gomes: «Nova Águia» prepara a traição dos intelectuais


Com a aproximação do décimo aniversário sobre o falecimento do filósofo Orlando Vitorino (1922-2003) assistem-se diversas tentativas de absorção da sua obra pelos universitários, reunidos na revista "Nova Águia", com o beneplácito de Pinharanda Gomes e António Brás Teixeira, antigos discípulos de Álvaro Ribeiro e companheiros de viagem.  Nós, os da “Leonardo” , escrevemos já em 2008, uma carta aberta  a Pinharanda Gomes a propósito de um artigo seu publicado n "O Diabo" sobre o legado da Escola de Filosofia Portuguesa e na sequência do confronto entre as teses da “Leonardo” e da “Nova Águia” e que, então como agora, se mantém actual.



CARO PINHARANDA


Lemos com atenção e o respeito que nos merece, como um dos que pertence à geração dos mestres da filosofia portuguesa, o artigo que fez publicar na edição de «O Diabo» (em 8 de Julho), a propósito da «Nova Águia».

Os da "Leonardo" perpetuam e actualizam o ideário de Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoae e, por conseguinte, a tradição da «Renascença Portuguesa», assim como a Escola de Filosofia Portuguesa, especialmente o magistério de Álvaro Ribeiro, José Marinho e Orlando Vitorino. Efectivamente, na direcção da “Leonardo” reúnem-se discípulos ou companheiros directos destes três filósofos. Longe vão os tempos em que, no convívio tertuliar, nos sugeriu o título “Leonardo” para a revista de filosofia portuguesa que então, nos anos oitenta, fizemos publicar.

Como é do conhecimento do Pinharanda, a “Leonardo” tem, desde Janeiro 2007, uma edição electrónica (que pode ser lida em http://www.leonardo.com.pt – a revista saiu do “ar” no final de 2010 e em breve voltará a estar disponível online), expressão dos mais novos autores da Escola de Filosofia Portuguesa.

Na “Leonardo”, o aparecimento de uma revista intitulada «Nova Águia» mereceu a devida atenção, tendo sido feito o cotejo entre as teses da filosofia portuguesa e as teses expostas no manifesto daquela publicação. Alguns dos seus colaboradores, nomeadamente Francisco Moraes Sarmento, João Seabra Botelho, Miguel Bruno Duarte e Paulo Samuel já publicaram textos que se relacionam directamente com a «Nova Águia». Mas este tópico, naturalmente, está longe de ocupar lugar primacial na temática leonardina, que se expressa em muitos outros artigos, tanto daqueles como de outros autores, nomeadamente Nuno Cavaco, Eduardo Aroso, Cynthia Taveira, António Carlos Carvalho, Gastão Baptista, entre outros. E, em artigos de mais estrita matriz filosófica, a Leonardo afirma a equidistância da filosofia portuguesa face ao Estado, às igrejas, às universidades, às maçonarias, entre outras tubas da cultura oficial.

Habituados ao rigor intelectual e escolástico de Pinharanda Gomes, não podemos deixar de estranhar algumas afirmações que, na forma e no estilo, nos são de todo irreconhecíveis, na medida em que entre companheiros de viagem, de há longa data, se patenteia a mesma tradição filosófica e poética.

No artigo em causa, Pinharanda Gomes enuncia ideias ou teses que merecem a nossa atenção, como quem escuta activamente. E que também nos obrigam apor alguns comentários.

Os trechos em causa são os seguintes:

1) «A “Nova Águia” renova o património da “Renascença Portuguesa ”, que teve a revista “A Águia” (1910/1932) por órgão promocional.»

A «Nova Águia» não apresenta qualquer «sistema de princípios filosóficos e patrióticos, entre eles o do primado da educação para a República», finalidade que Pinharanda atribui a «A Águia» da «Renascença Portuguesa». Será fácil perceber se, como nós, os da Leonardo, cotejar o palavreado reunido em forma de Manifesto.

Este conjunto de frases feitas e lugares comuns não corresponde à tradição da Renascença Portuguesa. Por exemplo, não se faz referência à questão da «igreja nacional», nada se diz sobre a necessária extinção da universidade. Como pode então a «Nova Águia» efectivar, à luz de princípios filosóficos e patrióticos, o «primado da educação», tanto mais que muitos dos colaboradores da revista são prestigiados «profissionais da filosofia», lídimos funcionários da instituição que por longos decénios ostracizou e hostilizou a filosofia portuguesa, enquanto promovia e sustentava a genérica «cadeira» de «Filosofia em Portugal»? Eis algumas das razões que nos afastam da ideia segunda a qual a «Nova Águia» renova o património da «Renascença Portuguesa».

2) Aos pensadores oriundos dessa fonte (Renascença Portuguesa) «não foi concedido o acesso ao poder».

Estranha frase, vinda de quem sempre ouvimos dizer que a filosofia, ou se preferir, a arte de filosofar, é uma inutilidade, no sentido, acrescentamos nós, do reconhecimento social. Estranha frase para quem disse que o filósofo «fala só» e «anda direito». Ainda ressoam no nosso espírito as palavras do Pinharanda: «o verdadeiro filósofo anda direito, solitário, entre as gentes de quem é solidário. A sua virtude será também a sua condenação neste mundo. Mas o filósofo não é deste mundo».

Então, a que poder se refere? Para os homens de espírito o que mais importa são os princípios, quais sejam a Beleza, a Verdade e a Bondade, e se acaso emana algum “poder” desse modo de vida, não se destinará ele à «transformação da cidade, da nação e do mundo» como se lê no referido Manifesto.

Segundo a Escola de Filosofia Portuguesa, Portugal é uma Pátria (entidade espiritual e transcendente), uma Nação (que são as sucessivas gerações de Portugueses), uma República (coisa pública) e um Estado (efectivação do direito segundo a Verdade, a Liberdade e a Justiça), conceitos sistematizados por Orlando Vitorino, que lhes deu forma jurídica.

Mas claro que tudo isto nada tem a ver com o poder, esse poder a que se refere no seu artigo e que corrompe a arte de filosofar. E já agora: não será esse poder que motiva tão estranha congregação de figuras que ao jeito de suplicantes, integram os miríficos órgãos directivos da «Nova Águia»?

 

3) A «Nova Águia» propõe-se «continuar o projecto da “Renascença Portuguesa” e dos correlativos movimentos posteriores, com uma circular abertura ao pluralismo, nela cabendo todas as vozes que, para além dos sectarismos estéreis, e das corporações de interesses como são os Partidos, acreditem no renascimento do oprimido Portugal e na construção da comunidade lusófona, abrindo ao homem uma vida livre, consciente, solidária, plena e total.»

A «Nova Águia», pela forma que se apresenta, é, e não pode libertar-se disso, uma expressão da cultura oficial e universitária. E como o Pinharanda abona, nela cabem «para além de todos os sectarismos estéreis, e das corporações de interesses como são os Partidos», toda uma série de figuras que não só desconhecem o que seja o ideário da «Renascença Portuguesa» como ainda, desde sempre, procuram negar a existência da filosofia portuguesa, e por conseguinte da Pátria Portuguesa, através da calúnia, da inveja e da mais baixa retórica em prol da estranja. Nesse sentido, a «Nova Águia» prepara a traição dos intelectuais.

Basta lembrar, como exemplo, as rasteiras afirmações de Eduardo Lourenço, discípulo de António Sérgio e mestre de Miguel Real: «A concepção que Álvaro Ribeiro manifesta nesse ensaio [O Problema da Filosofia Portuguesa] tomando a filosofia como qualquer coisa que se aprende ou transmite tal e qual como a técnica de fazer o melhor parafuso, é simplesmente absurda. Fala em “adoptar um sistema filosófico “como quem diz usar uma certa marca de camisas ou água de colónia, em perfeita contradição com afirmações doutro género como esta: “São exactamente os pensadores mais audaciosos e livres aqueles que desviam a filosofia para zonas nunca exploradas “. (...) “Discute-se qual o sistema filosófico, entre os que na Europa mais benéfica influência exercem no pensamento contemporâneo, deva ser importado, adoptado e difundido no ambiente intelectual português”. Quem é que discute? Onde? Não se teria equivocado Álvaro Ribeiro, ouvindo falar em importação, de batatas da Dinamarca e automóveis de Detroit? Onde está essa U. N R. R. A. dos sistemas filosóficos?» Para um discípulo de Álvaro Ribeiro nada há a dizer? Será que sem a filosofia portuguesa existem Portugueses conscientes e livres?

Que distância poderá agora haver entre estes sarcasmos eduardinos de há trinta anos, típicos de um académico estrangeirado que, do alto do seu distante prestígio, retoma ao País para se assumir como farol da intelectualidade que concretizou o enfeudamento, politico e filosófico, de Portugal ao serôdio ideário positivista europeu, e a «Nova Águia» que, algures na inefável diversidade dos seus textos e autorias, vá lá entender-se por que caminhos ínvios e ocultas virtudes, apresenta Miguel Real, autor de «A Morte de Portugal», como o único ensaísta, ou filósofo, a merecer, no primeiro número da revista que, dizem, pretende renovar o ideário da «Renascença», uma recensão da Obra (exactamente, uma obra com «O» maiúsculo). A recensão é feita por um director da revista, que acompanha este autor desde que «estava a terminar a (...) Licenciatura em Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, já preparando o Mestrado e o Doutoramento (...) na área do pensamento português contemporâneo». Com a mesma precisão com que geriu a sua voluntariosa ascensão pelos graus do curriculum universitário, este director traça o quadro onde ele, e possivelmente a revista que dirige, se orienta e movimenta. Nesse texto, começa por atribuir a Miguel Real (hoje, um dos directores da “Nova Águia”) a confirmação da possibilidade de uma «terceira via»: nem a via «académica» do desconhecimento altivo, que troça da filosofia portuguesa, nem a via anti-académica da contra-posição da tradição filosófica portuguesa a todas as outras. Real, o declarado discípulo do trocista Lourenço, é assim promovido a mentor da apaziguadora e abrangente «terceira via», de que parecem participar ou usufruir os que se revêem na «Nova Águia»!.

Entretanto, aos que se declarem discípulos de Álvaro Ribeiro e Orlando Vitorino, e que nessa «terceira via» não se revejam, o que estará reservado? Segundo o mesmo texto, parece que será assim: numa primeira fase, serão caricaturados como irrelevantes cultores de uma filosofia que se apresenta como «uma religião revelada», um «dogma». Depois, em fase posterior, a da usual bordoada sergina, serão epitetados de «sectários estéreis», uma vez que, a interesses corporativos não poderão ser arregimentados.

Também neste quadro estranhamos a aparente adesão de Pinharanda a esta «terceira via». Em si vemos o companheiro de numerosas iniciativas que foram decisivas para a fisionomia espiritual de uma Pátria que não se reconhece num qualquer libertino amesquinhar de religiões reveladas, ou na ignorância do que são dogmas.

De memória, referimos algumas dessas iniciativas:

— O «57», jornal do movimento da filosofia portuguesa.

— Conferências sobre o Ideal Português.

— A revista “Escola Formal” que propôs o liberalismo como «sistema natural da existência dos homens em sociedade».

— Campanha presidencial de 1986, dez meses de actividade intelectual e política durante a qual foram apresentadas propostas deduzidas dos princípios filosóficos, entre as quais um sistema para a economia, uma constituição política para Portugal e uma organização para o ensino que passava pela extinção da universidade pombalina.

Além destes aspectos que, repetimos, são referidos de memória, há as várias publicações de filosofia portuguesa, ciclos e debates, obras editadas, etc., que fazem da Escola de Filosofia Portuguesa um organon da Pátria com repercussões em todos os aspectos da vida geral dos Portugueses.

Poderíamos inventariar um sem número de iniciativas, sempre coerentes e actuais nos seus propósitos espirituais. Por conseguinte, não podemos concordar, e lemos com alguma incredulidade, a bizarra afirmação segundo a qual «desde 1932, ano de encerramento de “A Águia”, ao País não fora proposto um tão ciente e consciente documento programático de vida pátria.» Essa nossa incredulidade, Pinharanda, nasce ainda do que ficou dito, em palavras suas, a propósito de «A Exaltação da Filosofia Derrotada» de Orlando Vitorino: «Este livro só é comparável a “A Ideia de Deus” de Sampaio Bruno; só que, na sua conjuntura, o problema de Deus aparece figurado na ideia de Pátria para a qual O. Vitorino oferece uma Constituição. Nunca ninguém, com tanto amanho de terra arada, lavrou tão fundo, fazendo a arroteia de quanto importa: O jogo doméstico, o objectivo nacional, o interesse estatual, o ideal pátrio, o destino da liberdade humana em verdade. (...) Tudo aí está prometido ao futuro.»

Terminamos, evocando Álvaro Ribeiro, nosso Mestre comum, segundo o qual, fora do convívio tertuliar, os discípulos poderão sempre interrogar os mestres quando assumem posições públicas,

Um abraço dos seus companheiros de viajem.

A Direcção

Leonardo, revista de filosofia portuguesa
 

 

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Conversa descontraída

Conversa descontraída entre João Botelho, Manuel Bernardes, Francisco Moraes Sarmento e Pedro Teixeira da Mota realizada a 7 de Agosto de 2013. A relegião, a ideia de Deus, a razão e o misticismo, a palavra e o ideal amoroso foram alguns dos temas abordados

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

A Grande Porca

A famosa caricatura que Bordallo Pinheiro intitulou “Política: a grande porca” continua a ilustrar com propriedade e razão a forma como a plutocracia se perpetua no Estado. Ficámos a saber, através do programa “Olhos nos Olhos” da TVI de hoje, que no domínio da “desorçamentação” estatal existem mais de três mil entidades que, não integrando o Estado, vivem à custa do Orçamento Geral, ou seja, à custa de todos nós. A “desormentação” é entendida com as despesas públicas não obedecem às regras do OGE e servem para alimentar a classe política e as clientelas partidárias. Estes financiamentos públicos decorrem sem a transparência, a justiça e a prudência que devem orientar a gestão da coisa pública.

Os números divulgados de entidades que “mamam na teta da porca” são os seguintes: 356 institutos públicos; 639 fundações; 485 associações sem fins lucrativos; 1182 entidades do sector público e empresarial do Estado; 343 empresas municipais e regionais. Só para se ter uma ideia do "peso" destas despesas, só as relativas às PPP´s vão representar mais de 1% do PIB nos próximos anos.

Para além dos casos em que se pode decidir por não subsidiar (por exemplo, as associações sem fins lucrativos e fundações) ou extinguir (empresas municipais será um dos casos), o Estado deve alterar os contratos das Parceiras Público-Privadas e outros. Na verdade, o Código Cilvil prevê que a alteração das circunstâncias (art.º 437.º do CC, salvo erro) posteriores à celebração do contrato e o Estado dispõe de meios para influenciar os seus parceiros numa resolução ganhadora para todos.

A “distribuição de sacrifícios” tão badalada pelos nossos governantes e políticos teria outro significado.

sábado, 14 de setembro de 2013

O lugar dos solitários

A Escola de Filosofia Portuguesa é o lugar de solitários, disse o autor deste texto na conferência «Filosofia Portuguesa hoje» que decorreu na Biblioteca Municipal de Sesimbra no dia 24 de Novembro (2007). O orador suspeitava que as suas palavras o deixariam ainda mais solitário. Assim foi: ao silêncio sobre as interrogações a propósito da nova geração da filosofia portuguesa sobreveio o argumento ad hominem, num estilo pouco comum no debate de ideias. Hoje, o autor dedica as suas palavras a Álvaro Ribeiro e Orlando Vitorino.

 
«O tolo é como préstito infindável
De fantasmas e deuses.
Lá vai êle,
No sítio mais exposto aos inimigos. 
É a labareda efémera, afrontando
A eterna escuridão, o eterno frio.»

Teixeira de Pascoaes

Convoca à oração alguém que, sublinha o poeta, não merece resposta de animais, entre os quais jumentos, nem de ecos fantásticos. Porque o tolo nada diz ou sabe dizer e, se acaso, dos presentes alguma compreensão há, vantagem levam sobre quem, vivendo na eterna idiotia, sentado na ponte, ignora e não compreende. Tendes pois, perante vós, um tolo de oratória rarefeita que, não obstante desconfiar que as palavras têm peso, conta e medida, tem por certo que nada Vos dirá. Em boa verdade, são palavras sem hipótese de eco no Firmamento e os mais atentos sabem, que não passam de sons pouco razoados e imperceptíveis.Nesta solidão pasmada, e a Escola da Filosofia Portuguesa é o lugar de solitários, dirijo-me a Vós na perfeita convicção da minha idiotia e com a certeza que as palavras se dissolvem no silêncio, talvez ensurdecedor, e me deixarão ainda mais solitário.

Pensar tudo desde o princípio, ou para a ele volver, sem grilhetas, eis o que importa. No espanto, não cabe cultura, religião ou história. A liberdade é heterodoxa ou não é.Ah! Que temor causa o radical princípio de identidade! Sem ele não se nomeia, predica ou atribui. A ortodoxia dos princípios é coisa de idiota. Estranho destino da virilidade da arte de pensar que não se envolve nos enredos das coisas demoníacas.A beleza, a verdade e a bondade, são os princípios da filosofia que o tolo contempla, alheio aos que procuram retirar-lhes a primazia na arte de pensar e negá-los segundo valores morais, religiosos e sociais. Dói-lhe a ilusão do espírito! A decadência do pensamento, triste fim!, pressente-se nos que deturpam o preceito ético da interrogação, na pergunta de exigência probatória. Em redor, versões dos mesmos quadros mentais, imitações do mesmo espírito maligno, degladiam-se ou fingem fazê-lo para proveito dos inocentes, caricaturas ou esboços de almas, conforme o poeta e o filósofo. O tolo interroga-se sobre o paradeiro dos homens libertos, dos quais apenas tem a obscura, a indecisa e a difusa impressão.Os mais antigos afirmam o primado da filosofia sobre os outros modos de saber, e a necessidade de saber mostrar, ou seja, de fazer ciência. O que se mostra são ideias, conceitos e teses. E ele, tolo desde sempre, procura um lugar no mundo, talvez porque ainda não seja quem cisma na ponte. O método é a íntima e inviolável demanda através dos seres e das coisas, da inferência que evidencia o universal.O que temos? Uma filosofia portuguesa, imagem da Pátria, que uns tantos convenientemente classificam como filosofia nacional, para a deturpar, quiçá negar, sob forma socialista, o nacionalismo, ao jeito dos anti-patriotas; os que confundem a morte dos filósofos com a morte do pensamento e esquecem a memória presente, actual ou actuante, e sobretudo, o carácter principial do pensamento, através do qual, os filósofos se reconhecem desde o princípio do mundo.O tolo canta almas penadas e, acreditem, bem tenta enunciar a tese, segundo a qual, a filosofia portuguesa é uma escola, um escol, um sistema; nos seus cantos, a alegria suicida-se e bem adverte que não basta haver escritores, mais ou menos dotados, mais ou menos poéticos ou religiosos, metafísicos ou místicos, ocultistas ou esotéricos, para que se firme a filosofia portuguesa.O tolo exalta-se e grita: «Creio em Deus! E creio na alma eterna!» E cisma! Cisma na eternidade do mundo que, por momentos, se deduz do pensamento que penetra a realidade e acorda a existência.

O tolo observa que, em seu redor, se fala mais de Deus do que do Espírito, palavra arredada da conversa, como que a indiciar que mais importa a religião do que a filosofia, a prova de amor do que o amor gratuito, a consciência gregária do que o princípio de individuação.Um dos que sabem, diz que a filosofia é órgão de liberdade; outro, sublinha que a liberdade é a própria actividade do espírito; finalmente, um terceiro, retira a conclusão e afirma que o liberalismo, que se deduz da filosofia portuguesa, é o modo natural do homem viver em sociedade. O sistema da liberdade é o hábito do homem. O liberto depende da posição de saber que almeja.Ainda falecem protestos na alma do tolo: fascista! Reaccionário! Extrema-direita!. O que diz um tolo? O que sabe ele sobre isso? Nada! É um princípio passível de direita ou esquerda? De nada depende o princípio e tudo a ele se ordena.O Tolo nada tem ou possui, muito menos a liberdade, o pensamento ou o saber. Mesmo o que se determina em liberdade, no fugaz instante, cristaliza-se na memória originária e inédita que se desoculta pela finalidade. A liberdade não é origem da necessidade, devaneia. Sussurra-lhe o poeta: «amas a realidade, porque, enfim, vês a substância eterna que se eleva, cá fora, em claras formas». Na ponte, onde ainda remotamente se senta, o tolo espanta-se com a razão animada que é. Corpo, alma e espírito, sublime tríade que potencia o animal racional ao logaritmo da propriedade. No deslumbre, por vezes perplexo ou delirante, no assombro do relâmpago, o idiota ama a inteira humanidade num só abraço.As vestes da aparição são ainda teoremas, desenho da adivinha. O tolo enuncia palavras que revelam a mais séria nudez e cumprem a promessa do pensamento sófico. O corpo de Sofia é já só Verbo amoroso, que se descobre é imaginação e alimenta o desejo. Por fim, devassa o céu para, no infinito, sondar a imperfeita capela da sua alma. A língua é a gramática da Pátria e sem filologia não há filosofia, para lembrar a esquecida tese que relaciona o teorema da cabala a as categorias aristotélicas. A boa nova é o anúncio de uma filologia, não já de gregos ou romanos, mas portuguesa! ponto sólido do sistema, escol ou Escola da Filosofia Portuguesa.A iniciação, autognósica, far-se-á segundo a idealidade da escola formal. Tudo o resto é obstáculo ao movimento que vai da alma ao espírito. E há ainda os que apenas ficam na sombra e discutem o obstáculo, sem desconfiarem que a sombra é ausência de luz. O espírito não se licencia, nem carece de autorização de seita, associação, sociedade ou ordem. A tradição é a palavra, acto de razão, e todos a ela têm acesso. Tudo o que há a saber pode-se saber e a todos é dado. A inteligência determina o grau de saber, visão ou teoria.O poeta lembra-lhe, por vezes, que se acende uma discreta claridade, mas o tolo vê o desmaio da luz, na branca sombra do esquecimento. Mais uma vez, o tolo é arrebatado pelo capricho delirante: sendo o movimento filosófico e poético que mais revistas originou na nossa cultura, porque se reduz a filosofia portuguesa a três (Águia, 57 e Teoremas de Filosofia), das quais só as duas primeiras desenvolveram teses e retiraram a consequente idealidade para a Pátria (e portanto, foram órgãos de filosofia)? Porque é que os filósofos que maior rigor e precisão imprimiram, ao pensamento e á expressão filosófica na língua portuguesa, sofrem a pena do silêncio, ao jeito de assassínio? Porque se pretende afirmar que a Escola de Filosofia Portuguesa não foi capaz de ter dado origem a 57 obras de filosofia, mas diversamente, a livros de história, religião, simbologia, poesia, esoterismo, divulgação cultural ou teses universitárias? Porque se esquece um filósofo que desenvolveu, durante dez meses, uma campanha presidencial, fez propostas concretas para a educação, a política e a economia e que, por fim, concebeu um curso de filosofia portuguesa? Porque se procura diminuir a Escola de Filosofia Portuguesa a uma tradição de escritores? Porque se continua a ignorar o carácter peripatético da Escola da Filosofia Portuguesa, e o seu livre magistério de pessoa a pessoa, mesmo por aqueles que se dizem iniciados por ela? Porque é que a nova geração da filosofia portuguesa é incapaz ou se recusa a ser a afirmação libertária do pensamento e da arte de pensar? Que espécie de compromissos procuram obstar à afirmação positiva e responsável das teses do sistema da filosofia portuguesa?

O Tolo inquieta-se e gostaria de verter as interrogações em perguntas, mas não é ainda ele que se senta na ponte, a cismar. É silhueta, ou como prefere o poeta, uma lembrança do passado. A mentira tem morada.Termino este desabafo confidente com as palavras errantes do pateta Pascaoes.

«O pobre tolo nada vê, por fim,
Nas trevas que o dominam»

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Serões Conimbricenses: a descoberta

O Ivo é uma personagem. Afirmá-lo não é negar a sua existência ou realidade. Aos da sociologia diria que come, dorme e ama, vive como qualquer um. Mas o que fascina é a sua personalidade.

 
É uma alma dorida e o sofrimento a que se expõe é-lhe imposto por um acto de sageza inteligente. Em tempos, reconheceu a sua inquietação nos escritores da escola francesa e no existencialismo francês e alemão. A via literária mostrou-lhe a inevitabilidade do ideal pátrio. E com ele, os filósofos portugueses. É uma ave nocturna e a claridade matinal, límpida e ainda inocente, fere-lhe o rosto e ofusca-lhe a visão.


Nos anos de juventude, o Ricardo frequentava a biblioteca do Ivo, primeiro, fascinado pelas personagens das histórias aos quadradinhos; depois, as lombadas dos livros foram motivo de curiosidade e, mais tarde, de interesse e entusiasmo. Aos poucos, os autores portugueses despertaram-lhe a imaginação. Fantasmas, anjos ou demónio, emergiam de nenhures, incomodavam a alma e inquietavam o espírito. Nunca mais encontrou sossego e, desde então, trilhou o destino dos solitários. O cheiro a papel velho tornara-se familiar e até indispensável ao correr dos dias. Por vezes adormecia, na pequena cama posta no lugar esconso do sótão. Ocasiões houve em que se esquecia do tempo, do cansaço e da fome. Sabia dos convívios nocturnos, mas o tempo de serão era sagrado.

 
Ali, só acediam, para além do Ivo, com os seus deuses e demónios, o João, o Leandro e o Pedro. Os serões decorriam na cozinha em redor de uma velha mesa de madeira pintada a branco e um tampo de mármore comum, que se convertia com os rituais da noite num altar de iniciação.

Durante as suas deambulações pelo sótão, uma cadeira de madeira e cabedal gravado com duas iniciais chamou-lhe a atenção: não estava coberta de pó e primava pela ausência de teias de aranha. O lugar e a posição pareciam intencionais. Ao aproximar-se a vista deteve-se numa frecha que se abria numa velha tábua. À medida que se acercava reconheceu as vozes que se esgueiravam pelo buraco. À espreita, conseguia apreciar o que supunha tão secreto e misterioso.

 
Na mesa, copos, pão, vinho, presunto, enchidos diversos, degustados ao ritmo da conversa e sem pressa pela noite dentro. Aqui e ali, bancos de madeira, também pintados a branco, eram utilizados e dispostos de acordo com o entusiasmo dos diálogos. A janela entreaberta permitia a circulação de ar, frio e cortante, que espantava o fumo que teimava em adensar o ambiente. Por vezes, um gato preto e peludo aninhava-se no parapeito. Conhecedor dos hábitos dos serões, o bicho ali ficava a jeito do ar mais quente. Teimoso observava até cerrar os olhos. As suas orelhas vigiavam os movimentos dos convivas e as tonalidades vocais.


A paciência do animal é sempre recompensada! No dealbar da noite, quando a aurora já se adivinha, sempre era presenteado com as sobras da noite. Chamava-se “Tareco”, soube mais tarde.

Numa dessas escutas, ouviu ao Pedro dizer algo que captou a atenção. Chegou de livro em punho e dirigiu-se ao anfitrião: “Oh Ivo!, trago um livro que descreve uma personagem muito semelhante ao que és ou procuras ser.” E leu para todos, um trecho da Criação do Mundo de Miguel Torga. “Uma personagem? Igual ao Ivo?” Perguntava-se a si próprio, a desejar que a leitura terminasse.

 
Depressa demandou o livro na biblioteca. “Poesia... Camões, Junqueiro, Pascoaes, Pessoa, Almada...Torga, por fim!” dizia, enquanto o dedo acompanhava à presa o percurso ansioso dos olhos nas lombadas. Lá estavam todos os volumes da Criação do Mundo!