segunda-feira, 30 de junho de 2014

A propósito de António Quadros e Miguel Torga

A casa da minha Avó Maria e do meu Avô Chico fica ao lado da de Miguel Torga, hoje transformada em museu (Ler mais aqui). Todos os dias, o poeta era visita certa. O "vizinho" ou "sr doutor", como era tratado na intimidade familiar, conforme o tema, o caso e a circunstância, batia à porta várias vezes ao dia. À noite, depois de jantar e conversar na sala de estar, subia para sótão, onde o meu Tio, Leandro Moraes Sarmento, tinha o seu escritório e biblioteca. Quando a Igreja de Santo António dos Olivais anunciava a meia-noite subia também ao terceiro andar da moradia. Ali ficávamos a conversar pela noite, entre livros e espíritos, num espaço esconso e pouco alumiado. Predominava também o fumo e o cheiro de tabaco preto que o meu Tio fumava a compassar o pensamento e as palavras. O Torga escolhia bastas vezes a termo "cousa", usado em modo reflexivo, emprestando a plena conotação telúrica de causa, talvez sem o perceber completamente, ao que dizia. "É uma cousa..." dizia a começar a frase. No geral, ouvia o diálogo entre os dois; por vezes, dizia o que me ia na alma. Certa vez, já depois do 25 de Abril e quando o "país ardia", era evidente para todos nós, a quem a Pátria mais importa, que perigava a perduração de Portugal, Torga lamentava a ausência de norte dos políticos, dos governantes e das elites em geral. Dessa vez, decidi fazer uma proposta mais concreta: "Então se considera que Portugal está em maus lençóis porque não se faz um manifesto contra a situação assinado por escritores, poetas e filósofos?". Como que aproveitando a oportunidade advinda do silêncio surpreso, acrescentei. "Posso propor a ideia aos que conheço em Lisboa." E mencionei António Quadros, entre outros. Para nosso espanto, Torga atalhou incomodado: "António Quadros? Não! Sou um homem de esquerda e ele é de direita!". E deu-se início a uma longa discussão, a vários tons e atitudes, sobre a ideia de Pátria e se a situação de Portugal valia o "complexo de esquerda" que o poeta evidenciava. Não era a primeira vez que Torga subsumia a sua genialidade poética aos cânones da imagem pública. Já de madrugada, sem deixarmos de esgrimir argumentos, fomos descendo ao segundo andar (onde toda a família dormia), piso térreo e jardim. Na manhã seguinte, por volta das treze, hora que o meu Avô impreterivelmente fazia cumprir a todos para dar início ao almoço, a apreensão dos meus familiares e a minha expressão carrancuda marcavam o momento. Afinal, todos ouviram o que se passara durante a madrugada. A minha Tia, que tem a admiração de uma vida por Miguel Torga, interrogou-me, ao que respondi: "Sabes, o vizinho não tem o que todos os homens têm!", disse irritado e sem pensar. Perante a resposta de discutível gosto, ficámos por ali. Entretanto, o meu Avô, já muito velho e debilitado pela Doença de Parkinson, acercou-se e apoiando-se no meu braço, questionou-me: "Sabes como se chama o primeiro livro do Vizinho?". À minha negativa esclareceu-me: "A Rampa!". "Sabes como era conhecido em Coimbra?", continuou. A nova negativa, respondeu: "A Trampa! Por isso, Francisco, não te incomodes!", enquanto se afastava vagarosamente, deixando-me com um sorriso nos lábios. Efectivamente, o próprio Torga tinha a noção de que se tratava de uma obra menor e não a reconhece na sua bibliografia. Ainda estava viva na consciência do poeta a ideia segundo a qual na acção política "a cultura é de esquerda", um preconceito que lhe toldava, por vezes, a responsabilidade enquanto intelectual que vivia angustiado com o destino da Pátria, um sentimento reconhecido por António Quadros, que o considerava um "poeta da resistência lusíada" e um dos clássicos da literatura portuguesa.

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