Entre António Ferro e Fernando Pessoa existia, sobretudo,
admiração mutua, aspecto que tem sido descurado pelos estudiosos. Dada a
importância que Ferro assumiu no início Estado Novo, os propósitos políticos e
algum revisionismo histórico, acompanhado pela ignorância ou o desprezo por
documentos e testemunhos já conhecidos, têm desconsiderado a relação intelectual
entre os dois escritores que terá tido início em 1912 e se manteve para além da
morte do poeta em 1935. Ainda a propósito de Estado Novo, António Ferro
desabafou, certa vez, mais ou menos o seguinte: “Em relação ao regime, sou como
Pessoa em relação à literatura: tenho vários heterónimos!”
Ferro foi o elemento mais novo do grupo de “Orpheu”, onde
surge como editor nos dois números publicados. Fernando Pessoa considerava-o
uma voz “na terra de infiéis”, como revela na dedicatória que acompanha a
oferta de “Mensagem”, assinou um protesto em defesa da peça “Mar Alto” de Ferro
que tinha sido proibida, assim como publica uma curta opinião no “Missal de
Trovas. Quadras dos 17 e 18 anos”, obra de Augusto Cunha e António Ferro.
Para Fernando Pessoa, Ferro era inteligente e atento. Numa
carta a Armando Côrtes-Robrigues (4 de Outubro de 1914), o poeta relata uma
partida que tinha preparado para Ferro com a conivência e participação de
outros amigos, reveladora da cumplicidade que existia entre eles: (…) Como a
única pessoa que podia suspeitar, ou melhor, vir a suspeitar, a verdade do caso
Caeiro era o Ferro, eu combinei com o Guisado que ele dissesse aqui, como que
casualmente, em ocasião em que estivesse presente o Ferro, que tinha encontrado
na Galiza “um tal Caeiro, que me foi apresentado como poeta, mas com quem não
tive tempo de falar”, ou uma cousa assim, vaga, neste género. O Guisado
encontrou o Ferro acompanhado de um amigo caixeiro-viajante, aliás. E começou a
falar no Caeiro como tendo-lhe sido apresentado, e tendo trocado duas palavras
apenas com ele. “Se calhar é qualquer lepidóptero” disse o Ferro. “Nunca ouvi
falar nele…” E, de repente, soa, inesperada, a voz do caixeiro-viajante: “Eu já
ouvi falar nesse poeta e até me parece que já li algures uns versos dele”.
A 7 de Abril de 1930, Pessoa escreve o seguinte: “Meu querido
António Ferro, Nem eu, nem o meu velho e imperfeito amigo Álvaro de Campos,
socializamos a nossa apreciação. Mas isto, que nada despe à apreciação, também
nada rasga da que é dada cooperativamente. (…) Tendo-nos nós ambos, regozijado
com a inteligência e a amizade, na leitura das admiráveis entrevistas que v.
levou por dentro para Espanha para as trazer por fora de lá, creio que é
decente - no sentido primitivo, latino e melhor da palavra - que lh’o digamos,
e lh’o digamos agora”.
Três anos mais tarde, a 11 de Março, nova carta de
Pessoa, agora a propósito do livro “Salazar”: “Meu querido
António Ferro: (…) Muito obrigado pelo exemplar, triplicemente dedicado, do
“Salazar”, que agora mesmo recebi. (…) Ela é de inteira admiração pela firmeza
subtil e a mestria publicitária – não vai nada que não seja elogioso na alma
d’este adjectivo corporalmente dúbio – com que v. cumpriu para consigo mesmo um
largo dever para com o público”.
O envolvimento de Pessoa com a família Quadros Ferro também
teve contornos mais íntimos como viria a revelar Fernanda de Castro, escritora,
poetisa e mulher de António Ferro.
Fernanda de Castro, no seu livro “Ao Fim da Memória”,
publicado em 1987, sugere a existência de um sentimento afectivo por parte de
Fernando Pessoa: “Era um homem calado, ensimesmado, de uma timidez que chegava
a incomodar-nos. Falei com ele bastantes vezes porque era amigo duma irmã de
minha mãe, a minha tia Castelo, e porque algumas vezes o encontrei numa
livraria ou em casa dos seus amigos Teixeira de Azevedo. Não gosto muito de
falar de Fernando Pessoa por uma razão delicada, que a mim própria se afigura
absurda: começaram a dizer-me, daqui e dali, que ele gostava de mim e que se
afastava propositadamente por eu ser casada com o António e ele ser muito seu
amigo. Nada disto me parece verdade porque, por mais introvertido, mais
discreto que seja um homem, quando está apaixonado acaba sempre por revelar-se
através de um gesto, de um olhar, de uma entoação, de um sorriso que os outros
não percebem mas que a mulher capta sempre. O que eu sabia, sim, é que ele
gostava dos meus versos e que o disse a várias pessoas, o que a própria irmã
confirmou há meses ao meu filho António, quando da comemoração, na Fundação
Gulbenkian, do quinquagésimo aniversário da sua morte. Isto agradava-me, é
claro, mas foi por estas razões que tinha resolvido suprimir o Fernando Pessoa
das minhas Memórias. Perante a insistência de alguns e não tendo nada a
esconder, resolvi desta vez explicar o meu silêncio, que certas pessoas e até
um certo crítico acharam inexplicável”.
Um ano após a sua morte, Ferro confirmava a sua admiração
pelo poeta em artigo publicado no “Diário de Notícias”, publicado a 30 de
Novembro de 1936. “Detestando o barulho, a publicidade, o acotovelamento,
este intelectual puro, quis sempre viver, ao contrário do que pensam alguns,
como Fernando Ninguém…Mas foi – o tempo o confirmará – uma verdadeira pessoa, uma grande pessoa!...” escrevia António Ferro que acrescenta que "um poeta grande que muitos
admiram, alguns compreendem e poucos conhecem, cujos versos serão eternos!.
Estes curtos comentários desmentem os que
procuram encontrar entre Ferro e Pessoa uma relação marcada pelo aspecto
político – o nacionalismo – e a
construção do ideário do Estado Novo.
Lembramos que a exposição "De Fernando Ninguém a Fernando Pessoa, A Presença de Fernando Pessoa na Fundação António Quadros" fica patente na Biblioteca Municipal de Rio Maior, até 30 de Julho.
Lembramos que a exposição "De Fernando Ninguém a Fernando Pessoa, A Presença de Fernando Pessoa na Fundação António Quadros" fica patente na Biblioteca Municipal de Rio Maior, até 30 de Julho.
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