Como
é do conhecimento do Pinharanda, a “Leonardo” tem, desde Janeiro 2007, uma
edição electrónica (que pode ser lida em http://www.leonardo.com.pt
– a revista saiu do “ar” no final de 2010 e em breve voltará a estar disponível
online), expressão dos mais novos autores da Escola de Filosofia Portuguesa.
Na
“Leonardo”, o aparecimento de uma revista intitulada «Nova Águia» mereceu a devida
atenção, tendo sido feito o cotejo entre as teses da filosofia portuguesa e as teses
expostas no manifesto daquela publicação. Alguns dos seus colaboradores, nomeadamente
Francisco Moraes Sarmento, João Seabra Botelho, Miguel Bruno Duarte e Paulo
Samuel já publicaram textos que se relacionam directamente com a «Nova Águia». Mas
este tópico, naturalmente, está longe de ocupar lugar primacial na temática
leonardina, que se expressa em muitos outros artigos, tanto daqueles como de
outros autores, nomeadamente Nuno Cavaco, Eduardo Aroso, Cynthia Taveira,
António Carlos Carvalho, Gastão Baptista, entre outros. E, em artigos de mais
estrita matriz filosófica, a Leonardo afirma a equidistância da filosofia portuguesa
face ao Estado, às igrejas, às universidades, às maçonarias, entre outras tubas
da cultura oficial.
Habituados
ao rigor intelectual e escolástico de Pinharanda Gomes, não podemos deixar de
estranhar algumas afirmações que, na forma e no estilo, nos são de todo irreconhecíveis,
na medida em que entre companheiros de viagem, de há longa data, se patenteia a
mesma tradição filosófica e poética.
No
artigo em causa, Pinharanda Gomes enuncia ideias ou teses que merecem a nossa
atenção, como quem escuta activamente. E que também nos obrigam apor alguns
comentários.
Os
trechos em causa são os seguintes:
1) «A “Nova Águia” renova o património
da “Renascença Portuguesa ”, que teve a revista “A Águia” (1910/1932) por órgão
promocional.»
A
«Nova Águia» não apresenta qualquer «sistema de princípios filosóficos e patrióticos,
entre eles o do primado da educação para a República», finalidade que Pinharanda
atribui a «A Águia» da «Renascença Portuguesa». Será fácil perceber se, como
nós, os da Leonardo, cotejar o palavreado reunido em forma de Manifesto.
Este
conjunto de frases feitas e lugares comuns não corresponde à tradição da Renascença
Portuguesa. Por exemplo, não se faz referência à questão da «igreja nacional»,
nada se diz sobre a necessária extinção da universidade. Como pode então a «Nova
Águia» efectivar, à luz de princípios filosóficos e patrióticos, o «primado da
educação», tanto mais que muitos dos colaboradores da revista são prestigiados
«profissionais da filosofia», lídimos funcionários da instituição que por longos
decénios ostracizou e hostilizou a filosofia portuguesa, enquanto promovia e sustentava
a genérica «cadeira» de «Filosofia em Portugal»? Eis algumas das razões que nos
afastam da ideia segunda a qual a «Nova Águia» renova o património da «Renascença
Portuguesa».
2) Aos pensadores oriundos dessa fonte
(Renascença Portuguesa) «não foi concedido o acesso ao poder».
Estranha
frase, vinda de quem sempre ouvimos dizer que a filosofia, ou se preferir, a
arte de filosofar, é uma inutilidade, no sentido, acrescentamos nós, do reconhecimento
social. Estranha frase para quem disse que o filósofo «fala só» e «anda
direito». Ainda ressoam no nosso espírito as palavras do Pinharanda: «o verdadeiro
filósofo anda direito, solitário, entre as gentes de quem é solidário. A sua virtude
será também a sua condenação neste mundo. Mas o filósofo não é deste mundo».
Então,
a que poder se refere? Para os homens de espírito o que mais importa são os
princípios, quais sejam a Beleza, a Verdade e a Bondade, e se acaso emana algum
“poder” desse modo de vida, não se destinará ele à «transformação da cidade, da
nação e do mundo» como se lê no referido Manifesto.
Segundo
a Escola de Filosofia Portuguesa, Portugal é uma Pátria (entidade espiritual e
transcendente), uma Nação (que são as sucessivas gerações de Portugueses), uma
República (coisa pública) e um Estado (efectivação do direito segundo a
Verdade, a Liberdade e a Justiça), conceitos sistematizados por Orlando Vitorino,
que lhes deu forma jurídica.
Mas
claro que tudo isto nada tem a ver com o poder, esse poder a que se refere no
seu artigo e que corrompe a arte de filosofar. E já agora: não será esse poder que
motiva tão estranha congregação de figuras que ao jeito de suplicantes, integram
os miríficos órgãos directivos da «Nova Águia»?
3) A «Nova Águia» propõe-se «continuar o
projecto da “Renascença Portuguesa” e dos correlativos movimentos posteriores,
com uma circular abertura ao pluralismo, nela cabendo todas as vozes que, para
além dos sectarismos estéreis, e das corporações de interesses como são os Partidos,
acreditem no renascimento do oprimido Portugal e na construção da comunidade
lusófona, abrindo ao homem uma vida livre, consciente, solidária, plena e
total.»
A
«Nova Águia», pela forma que se apresenta, é, e não pode libertar-se disso, uma
expressão da cultura oficial e universitária. E como o Pinharanda abona, nela cabem
«para além de todos os sectarismos estéreis, e das corporações de interesses como
são os Partidos», toda uma série de figuras que não só desconhecem o que seja o
ideário da «Renascença Portuguesa» como ainda, desde sempre, procuram negar a
existência da filosofia portuguesa, e por conseguinte da Pátria Portuguesa, através
da calúnia, da inveja e da mais baixa retórica em prol da estranja. Nesse sentido,
a «Nova Águia» prepara a traição dos intelectuais.
Basta
lembrar, como exemplo, as rasteiras afirmações de Eduardo Lourenço, discípulo
de António Sérgio e mestre de Miguel Real: «A concepção que Álvaro Ribeiro
manifesta nesse ensaio [O Problema da Filosofia Portuguesa] tomando a filosofia
como qualquer coisa que se aprende ou transmite tal e qual como a técnica de
fazer o melhor parafuso, é simplesmente absurda. Fala em “adoptar um sistema filosófico
“como quem diz usar uma certa marca de camisas ou água de colónia, em perfeita
contradição com afirmações doutro género como esta: “São exactamente os pensadores
mais audaciosos e livres aqueles que desviam a filosofia para zonas nunca
exploradas “. (...) “Discute-se qual o sistema filosófico, entre os que na
Europa mais benéfica influência exercem no pensamento contemporâneo, deva ser importado,
adoptado e difundido no ambiente intelectual português”. Quem é que discute?
Onde? Não se teria equivocado Álvaro Ribeiro, ouvindo falar em importação, de
batatas da Dinamarca e automóveis de Detroit? Onde está essa U. N R. R. A. dos
sistemas filosóficos?» Para um discípulo de Álvaro Ribeiro nada há a dizer?
Será que sem a filosofia portuguesa existem Portugueses conscientes e livres?
Que
distância poderá agora haver entre estes sarcasmos eduardinos de há trinta anos,
típicos de um académico estrangeirado que, do alto do seu distante prestígio, retoma
ao País para se assumir como farol da intelectualidade que concretizou o enfeudamento,
politico e filosófico, de Portugal ao serôdio ideário positivista europeu, e a
«Nova Águia» que, algures na inefável diversidade dos seus textos e autorias,
vá lá entender-se por que caminhos ínvios e ocultas virtudes, apresenta Miguel
Real, autor de «A Morte de Portugal», como o único ensaísta, ou filósofo, a merecer,
no primeiro número da revista que, dizem, pretende renovar o ideário da «Renascença»,
uma recensão da Obra (exactamente, uma obra com «O» maiúsculo). A recensão é
feita por um director da revista, que acompanha este autor desde que «estava a
terminar a (...) Licenciatura em Filosofia na Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, já preparando o Mestrado e o Doutoramento (...) na área
do pensamento português contemporâneo». Com a mesma precisão com que geriu a
sua voluntariosa ascensão pelos graus do curriculum universitário, este director
traça o quadro onde ele, e possivelmente a revista que dirige, se orienta e movimenta.
Nesse texto, começa por atribuir a Miguel Real (hoje, um dos directores da “Nova
Águia”) a confirmação da possibilidade de uma «terceira via»: nem a via
«académica» do desconhecimento altivo, que troça da filosofia portuguesa, nem a
via anti-académica da contra-posição da tradição filosófica portuguesa a todas
as outras. Real, o declarado discípulo do trocista Lourenço, é assim promovido
a mentor da apaziguadora e abrangente «terceira via», de que parecem participar
ou usufruir os que se revêem na «Nova Águia»!.
Entretanto,
aos que se declarem discípulos de Álvaro Ribeiro e Orlando Vitorino, e que
nessa «terceira via» não se revejam, o que estará reservado? Segundo o mesmo
texto, parece que será assim: numa primeira fase, serão caricaturados como irrelevantes
cultores de uma filosofia que se apresenta como «uma religião revelada», um
«dogma». Depois, em fase posterior, a da usual bordoada sergina, serão
epitetados de «sectários estéreis», uma vez que, a interesses corporativos não poderão
ser arregimentados.
Também
neste quadro estranhamos a aparente adesão de Pinharanda a esta «terceira via».
Em si vemos o companheiro de numerosas iniciativas que foram decisivas para a
fisionomia espiritual de uma Pátria que não se reconhece num qualquer libertino
amesquinhar de religiões reveladas, ou na ignorância do que são dogmas.
De
memória, referimos algumas dessas iniciativas:
—
O «57», jornal do movimento da filosofia portuguesa.
—
Conferências sobre o Ideal Português.
—
A revista “Escola Formal” que propôs o liberalismo como «sistema natural da
existência dos homens em sociedade».
—
Campanha presidencial de 1986, dez meses de actividade intelectual e política durante
a qual foram apresentadas propostas deduzidas dos princípios filosóficos, entre
as quais um sistema para a economia, uma constituição política para Portugal e
uma organização para o ensino que passava pela extinção da universidade pombalina.
Além
destes aspectos que, repetimos, são referidos de memória, há as várias publicações
de filosofia portuguesa, ciclos e debates, obras editadas, etc., que fazem da
Escola de Filosofia Portuguesa um organon da Pátria com repercussões em todos os
aspectos da vida geral dos Portugueses.
Poderíamos
inventariar um sem número de iniciativas, sempre coerentes e actuais nos seus
propósitos espirituais. Por conseguinte, não podemos concordar, e lemos com
alguma incredulidade, a bizarra afirmação segundo a qual «desde 1932, ano de
encerramento de “A Águia”, ao País não fora proposto um tão ciente e consciente
documento programático de vida pátria.» Essa nossa incredulidade, Pinharanda,
nasce ainda do que ficou dito, em palavras suas, a propósito de «A Exaltação da
Filosofia Derrotada» de Orlando Vitorino: «Este livro só é comparável a “A
Ideia de Deus” de Sampaio Bruno; só que, na sua conjuntura, o problema de Deus
aparece figurado na ideia de Pátria para a qual O. Vitorino oferece uma Constituição.
Nunca ninguém, com tanto amanho de terra arada, lavrou tão fundo, fazendo a
arroteia de quanto importa: O jogo doméstico, o objectivo nacional, o interesse
estatual, o ideal pátrio, o destino da liberdade humana em verdade. (...) Tudo aí
está prometido ao futuro.»
Terminamos,
evocando Álvaro Ribeiro, nosso Mestre comum, segundo o qual, fora do convívio
tertuliar, os discípulos poderão sempre interrogar os mestres quando assumem
posições públicas,
Um
abraço dos seus companheiros de viajem.
A
Direcção
Leonardo,
revista de filosofia portuguesa