Orlando Vitorino
ou a filosofia como acto de liberdade
O décimo aniversário sobre o falecimento de Orlando Vitorino
(1922-2003), um dos filósofos mais decisivos da Casa de Portugal, passa na
próxima semana. Epígono de Álvaro Ribeiro e José Marinho, é um dos propositores
da Escola de Filosofia Portuguesa, continuadora da “Renascença Portuguesa” de
Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes.
De forma mais ou menos explícita, a filosofia portuguesa
sistematizou os seus princípios, conceitos e ideias, na senda da tradição
clássica, formalizando uma visão do homem e do mundo, cuja autenticidade
assegura a sua transmissão através de sucessivas gerações de filósofos e poetas
Para a brevidade deste artigo, e se quisermos anotar algumas
ideias essenciais desta tradição, diríamos que o magistério leonardino nos
deixou um sistema a que deu o nome de Criacionismo e postulou duas premissas: a
filosofia é o órgão da liberdade o homem é um obreiro do mundo a fazer. O seu
discípulo Álvaro Ribeiro, sistematizou a tese da existência da filosofia
portuguesa, perante a adversidade geral das instituições da cultura oficial e a
concordância de poetas e filósofos, e deixou para o futuro difícil noção: o
homem é um composto de corpo, alma e espírito que resulta numa “razão
animada", contrariando o preconceituoso conceito de “anima racional”. A
filosofia é a arte de pensar e não há filosofia sem teologia são outras das
premissas de um dos mais fecundos filósofos portugueses, que Orlando intitulou
“Mestre dos que sabem”, lembrando o epíteto que Platão atribuiu a Aristóteles.
Para além do empenhamento político que implicavam estes filósofos na defesa de
causas retiradas do seu pensamento filosófico, também é comum aos dois, a
reflexão sobre as categorias aristotélicas e o pensamento categorial dos
predicados e atributos. Estes aspectos impressionam de forma definitiva e
exclusiva a tradição central da filosofia portuguesa, distinguindo na
literatura um estilo filosófico, garantido por uma lógica que é também uma
teoria do pensamento. Desde a sua intuição inicial, este estilo literário
resultou numa expressão filosófica sem cedências ao equívoco conceptual e
nocional. Não obstante a sua proposição por vezes enigmática, a contribuição de
José Marinho para a tradição da filosofia portuguesa advém seus postulados que
firmam a verdade como o que mais importa ao pensamento.
Nesta tradição, situa-se Orlando Viitorino cujo pensamento se
encontra exposto em diversas publicações, das quais ressaltam “Refutação da
Filosofia Triunfante” e “Exaltação da Filosofia Derrotada”, obras completadas
por uma terceira, por publicar, que o autor intitulou “As Teses da Filosofia
Portuguesa", e que sintetizaria um sistema de filosofia. Não obstante,
algumas das teses foram já expostas em artigos, como “A Teoria da Verdade de
José Marinho” e a “Doutrina do Espírito de Álvaro Ribeiro", publicados na
Leonardo, revista de filosofia portuguesa, nos quais enuncia a concordância
principial dos dois métodos da arte de pensar. No pensamento de Orlando
Vitorino caduca a referência, tão ao gosto dos que não acedem ao pensamento
categorial, a tese das “duas vias” da Escola Portuguesa, referindo-se uma a
Álvaro Ribeiro, outra a José Marinho. Neste autor, o magistério leonardino
realiza um movimento analógico e proporcional, qual espiral, num ideário que
Orlando designa a como um "idealismo realista” e que completa um ciclo da
filosofia clássica. Diz o filósofo que ciclo encerra todo o saber, a partir do
qual se fazem actualizações ou, em linguagem leonardina, cristalizações, ou a
sua decadência, coisificações, dessa tradição perene e original. "Não há
nenhum acréscimo substancial de saber ou ciência entre a filosofia
aristotélica, o cristianismo e a filosofia criacionista ", escreve Orlando
Vitorino.
Filosofia Triunfante e Filosofia Derrotada
Para marcar a situação cultural e a divergência entre a
filosofia moderna e a filosofia portuguesa, Orlando Vitorino designou as de
"Filosofia Triunfante” e "Filosofia Derrotada". No livro
dedicado à primeira, o filósofo enuncia o erro que constitui todo o pensamento
moderno. Desde logo, porque nega a eternidade do mundo, privando-o do seu
carácter necessário e impondo limites, onde o pensamento clássico concebia
perenidade e inviolabilidade. No mundo limitado e desnecessário, e por isso,
todo ele passível de ser explorado, a finalidade dada ao pensamento e
desenvolver técnicas domínio que o coloquem ao serviço e às mãos do homem. O
mundo e a natureza são ilusões, mera fenomenologia, para o pensamento moderno.
A última expressão da negação do mundo e da natureza, é a afirmação da
tecnologia como fundamento ôntico de toda a existência.
Dada a concordância de todo o pensamento, a consideração da
eternidade do mundo é uma condição do pensamento categorial. Não obstante, o
método partir do particular para o geral, ou se quisermos, do fim para o
princípio, a arte de pensar concebe desde o infinito e o inviolável, não como
decadência ou degradação do espírito, mas como realização positiva, necessária
e transcendente da finalidade, ou se preferirmos, da Verdade. Como nos ensina a
lógica, a afirmação universal é uma condição da verdade. Os princípios
predicados permitem a dedução de atributos e, assim, participar na existência
das coisas, que até aqui, sem consciência delas próprias, apenas, só mera
virtualidade e disposição. O pensamento cateqorial, que é sempre pensamento da
verdade, e racional e necessário à realização do mundo porque atribui
existência as coisas, manifestando o que lhes é próprio. A razão, elemento
operativo, é um acordo existencial e um factor de amor e perfeição. A filosofia
portuguesa é uma religião da razão.
A confusão entre o que é determinado e o que é limitado,
aliado ao espectáculo do mundo e a sensitividade e a sentimentalidade, parecem
não garantir o que nos é dado aos sentidos mas o movimento de corrupção, se
carece do homem para se realizar, não lhe pertence. Como só se pensa o que é
estável, a dedução da irrealidade do sensível apresenta-se como verdadeira.
O mínimo pensamento que socorre toda a existência não é
compatível e com a coisificação do limite, porque então, seria suposto que esse
pensamento se esgote na plena existência. Sem fundamento lógico o limite é uma
negação e as relações perpétuas retiram-se da eternidade.
As tentativas de negar a eternidade do mundo são o primeiro
passo para a destituição do pensamento e a valorização da vontade e da acção,
como garante de todo o real, ser e existência.
Os mais apressados viam na exposição desta teses clássica,
aliás pouco desenvolvida na obra do filósofo, mas de primordial importância
para compreender a original do conceito de propriedade que determina todo o seu
pensamento, a negação dos dias da criação e, portanto, de Deus criador. A
leitura de quaisquer escrituras sagradas segundo a letra e a positividade da
narrativa, acaba por obstruir a teleologia teológica e dificulta a compreensão
da heterodoxia dos filósofos segundo uma teologia que não descansa na fé. Além
do mais, a criação do mundo supõe um nada, o “não-ser” ou uma “não-existência”,
conveniente à ontologia como fundamento de todo o real que, associada à tese da
morte de Deus, afasta a natureza da verdade e abandona o homem a si próprio.
Demora e Orlando Vitorino na demonstração do imenso erro das
teses da filosofia triunfante, se quisermos, da filosofia moderna, que resultam
nas diversas formas de materialismo moderno que se desenvolvem na história e na
cultura. O resultado, aliás já reconhecido pelos pensadores do desespero e do
temor, torna a vida humana insuportável e obstrui a realização da felicidade e
do bem. Entre o saber e o ignorar, destituída a verdade e a razão do acordo
amoroso e universal, o erro, aqui um intermediário ou demónio, instiga o mal no
teatro do mundo.
Eternidade e propriedade
Uma das ideias mais importantes de Orlando Vitorino, um dos
pensadores mais decisivos da Filosofia Portuguesa, é a de propriedade.
Brevemente explicitada na “Exaltação da Filosofia Derrotada", este
conceito firma e organiza o seu sistema filosófico. Se bem que a sua proposição
seja enunciada nos capítulos dedicados à economia e ao direito, é possível
deduzir o carácter principial desta noção de propriedade no pensamento do
filósofo.
Esta substância, diríamos o cosmolóqica, determina toda a
existência e da sua modalidade, que não é cisão, nem separação, resulta o
género de relação que o homem tem com o mundo. A propriedade é a forma da
existência, mas precede-a na virtualidade e potencialidade. E, como toda a
forma, e perfeita e um advento da verdade. A propriedade é o que é próprio das
coisas. Se num aspecto, nelas radica e delas não se separa; noutro, carece da
participação do homem para se realizar, na medida em que as coisas não têm
consciência ou o saber de si. Nas palavras do filósofo, as "para que se
saibam e depois se afirmem e manifestem no que lhes é próprio, na sua
propriedade”. A liberdade, que é a posição dos fins, faz manifestar a
finalidade das coisas que, até aqui, permaneciam inertes, "uma simples
presença. O homem, a razão humana ou actos de razão (as palavras), é um momento
do ser que transita para a existência e revela a sua propriedade. A sua
necessidade advém do mundo e não de Deus, que na sua omnipotência o poder a
dispensar, não informando o mundo.
Diz Orlando, que o homem "conhece assim que a existência
de cada coisa envolve toda a sua indivisível unidade, conhece que, manifestada
essa existência, a coisa se torna inalienável, conhece enfim que, estabelecida
a relação, ela não é instantânea e destruidora, mas tem de ser perpétua. Por
analogia, aos atributos que define para a propriedade – indivisível, inalienável
e perpetua -, Orlando faz corresponder três modos para a substancia que se
realizam em graus diferentes: absoluta, a perfeita e a imperfeita: o primeiro,
tem a sua imagem no corpo do homem, identifica ser e existir, é o arquétipo das
outras duas formas de propriedade e identifica-se com a liberdade: o segundo,
refere-se às coisas naturais; a terceira, às coisas industriais, ou que são
produzidas pela máquina.
Esta concepção não se garante se for abandonada a
consideração segundo a qual o mundo e eterno. Prestes, se da precedência e
realidade ao “não-ser”, algo que não pode ser pensado porque não tem
propriedade. Por outro lado, as coisas são para serem e existirem, pelo que
esse "não-ser” e efémero e provisório e concebe a criação do homem como livre
arbitrio de Deus ou o acaso das forças cósmicas. No lance, aduzimos que para
este autor o mal também é efémero e, acrescentamos, um equivalente
“não-ser".
O pensamento só pensa a verdade e o bem e por conseguinte,
todas as finalidades são tomadas como boas. O carácter principial do bem não se
coaduna com cisões e a equivalência dos dois termos bem e mal - contradiz a
natureza humana. O bem é um princípio, 0 mal uma determinação no mundo.
A história e a cultura revelam a ilusão e mostram o erro da
razão humana. Para a entificação do mal conoorre a carência do pensamento
cateqorial nas determinações do espírito, da verdade e da liberdade. O
Espírito, a Verdade e a Liberdade, predicados análogos aos atributos
indivisível, inalienável e perpétua., organizam o sistema filosófico de Orlando
Vitorino segundo três aspectos: as condições do pensar, a representação do
mundo e a realização dos princípios. Aquela trilogia é a teleologia que
determina a obra deste pensador, assim como o seu movimento operativo. do qual
nos deixou testemunho na economia, na política e na educação. Nesta dedução,
Orlando Vitorino seguiu o preceito de Leonardo, segundo o qual a filosofia e o
órgão de liberdade, elemento do espírito que a razão assegura e revela.
Repto às novas gerações
O pensamento de Orlando Vitorino promove a esperança. A
síntese operativa que faz ao nível da educação, da economia e do direito
realiza e introduz a liberdade no convívio entre os homens. Às gerações
futuras, Orlando Vitorino esclareceu as tendências modernas e enunciou as
condições do pensamento filosófico. As suas noções desenvolvem um ideário que
possibilita e situa a visão da felicidade para a condição actual do homem.
Efectivamente, vivem-se hoje acontecimentos que assinalam o transito para uma
nova Era e um novo estilo de vida, à semelhança da “revolução industrial”. Este
transito necessita de uma visão orientadora, ou se preferirmos, de um
pensamento categorial para que sejam dados aos instrumentos, nomeadamente a
técnica e a tecnologia finalidades que não apontem para o fim do mundo, nem
tornem a vida insuportável ou espalhem a infelicidade. O desígnio da história
deu um sinal, ao fazer da Internet um instrumento de liberdade. A filosofia
portuguesa é o repto às novas gerações de filósofos e poetas. Divulgar a
tradição pode ser trabalho culturalmente meritório, mas não o operacionalizar
para os dias de hoje e não seguir o exemplo dos mestres que às causas fizeram
corresponder sistemas filosóficos e corolários sociais e políticos, é recusar
as responsabilidade espirituais para com a Pátria que vive, de há multo, um
crepúsculo outonal.