segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Guilherme Manpuya: "A eternidade é uma criação artística"

O texto que se publica é a reprodução de uma conversa com Guilherme Manpuya, ocorrida em Maio de 2011, em Luanda, a propósito de uma exposição que realizou no Instituto Camões nesta cidade e que foi publicada em forma de entrevista no semanário SOL Angola, com o título "Guilherme Manpuya no Instituto Camões em Luanda".

“O Tempo Não Pára” é o tema da exposição do pintor Guilherme Manpuya que vai ser inaugurada no próximo dia 25, Dia de África, no Instituto Camões, em Luanda. «Um tema escolhido em conjunto», revela o artista ao SOL. «Quando me contactaram, já tinha a ideia de pintar uma série de quadros ao jeito de crónicas do dia-a-dia», afirma. No fundo, o movimento das coisas que vão acontecendo, ou nas palavras do pintor, a «fluidez do tempo».

As obras que vai apresentar ao público são, todas elas, inéditas. «Pintadas entre Fevereiro e Abril deste ano», precisa. Quanto a novidades, a revelação pública de um novo caminho. «Geralmente, as minhas telas são totalmente preenchidas, o que não vai acontecer desta vez», revela Manpuya. As cores dominantes são o vermelho, o azul, o branco e o verde-limão. Sobre a reacção do público espera para ver: «Lerei as expressões dos rostos e logo saberei a apreciação que fazem».

De Picasso a Dubuffet

Entre as duas dezenas de obras, oito “falam” entre si e funcionam como um políptico. No total são 2,40 por 1,24 metros de tela que vão estar no Instituto Camões, na capital angolana.
O diálogo com o pintor decorre solto e sem alinhamento. Miguel Ângelo é nome muitas vezes lembrado, mas também surgem outros. Picasso é um deles: «Estudei este pintor que me ensinou uma regra: pintar todos os dias».

Mas não lhe bastava. Era "popular" e superficial em muitos aspectos. A visão que buscava nos anos de aprendizagem descobriu-a, mais tarde, num grande mestre da pintura: Salvador Dalí. “Nunca se compreende plenamente a profunda visão mística de Dalí”, alerta. Além da infinita imensidão que lhe ensina este pintor, Guilherme Manpuya lembra que alguns dos seus traços são inspirados em Jean Dubuffet, o criador da “arte bruta”, expressão que designa os criadores livres de qualquer influência de estilos oficiais, incluindo as diversas vanguardas, ou das imposições do mercado de arte.

Caminho igual a Haring

Segundo Manpuya, o pintor francês «minimiza o ver no traço e, deste modo, foge ao realismo». E conta uma história: «Certa vez, um amigo olhando para as minhas telas reparou nas semelhanças com um artista norte-americano, Keith Haring». Alertado, foi informar-se sobre este pintor e descobriu que, também ele, tinha buscado inspiração em Dubuffet.

Guilherme Manpuya e Francisco Moraes Sarmento
Reveladas as fontes, onde fica a originalidade de Guilherme Manpuya? «Tento exprimir na tela, as minhas ideias, os meus fantasmas, no que designo de “realismo figurativo”. Respeito o corpo humano, os padrões, a harmonia e a proporção, mas dou-lhe uma fisionomia figurativa», revela. E explica: «Por exemplo, vejo um determinado real e dou-lhe uma expressão que, sem nunca deixar de ser esse real, adquire um carácter especial e único que está e não está nesse real concreto».

Trata-se de um momento, «produto do espírito, que retira força ao tempo». A obra de arte «é uma cristalização do espírito, do ponto de vista formal e material», explicita. O “realismo figurativo” coloca o real «fora do tempo» e, simultaneamente, «é um momento que permite compreender mais profundamente o real que imita e exprime», acentua Manpuya. «A eternidade é uma criação artística», conclui.

Para o artista, a visão é um dom e sabe que o gesto que determina o traço, tanto lhe pertence, como é de algo que, através dele, ganha sentido social. O exemplo vai retirá-lo a Mukichi, ente místico das Lundas, «um dançarino que surgiu da noite do tempo e nada se sabe sobre a sua geração. O tempo não passa por ele e a sua figura é uma presença da nossa alma», confidência.


Aqui, surge a aparente contradição entre «o tempo não pára», título da exposição, e a eternidade do momento. Guilherme Manpuya resolve a interrogação: «o momento é a intersecção do espírito no material, uma cristalização que vive através da memória».

sábado, 18 de outubro de 2014

Entrevistas da Leonardo, revista de filosofia portuguesa_António Duarte




Entrevista do escultor António Duarte (Caldas da Rainha, 1912 – 1998) publicada na Leonardo, revista de filosofia portuguesa, em Junho de 1988,  que começa assim: "Talvez o tempo se associe às palavras e nas palavras de António Duarte a velhice, que muitos, tragicamente, vêem crepuscular e invernosa, é o suave prelúdio de uma renascença, de uma Vida Nova que na vida velha, envelhecida, importa preparar. Foi num primaveril princípio de tarde de Março que o escultor nos recebeu (o Francisco Moraes Sarmento, o Paulo Perloiro e o João Luis Ferreira), primeiro em sua casa e, depois, no seu estúdio em Belém."




















terça-feira, 19 de agosto de 2014

Tertúlia da Filosofia Portuguesa: a visita de Ana Maria Moog e António Paim

Fotos que registam o dia em que recebemos Ana Maria Moog e António Paim, da Universidade Gama Filho (Brasil), na Mimosa do Camões, onde nos reuníamos, às terças-feiras. Reconhecem-se Henrique Barrilaro Ruas, Afonso Botelho e Gonçalo Magalhães Colaço (sentados). Da esquerda para a direita António Brás Teixeira, João Bigotte Chorão, Paulo Borges, Álvaro Dentinho, António Quadros, António Paim, Ana Maria Moog, Pó, Francisco Moraes Sarmento, Luis Viana Baptista, Paulo Perloiro, João Luis Ferreira e Manuel Cândido.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Ainda António Quadros e Miguel Torga

Apesar do silêncio público de Miguel Torga sobre os escritores, filósofos e poetas da Escola de Filosofia Portuguesa, o certo é os conhecia e tinha-os em boa conta. Na verdade, Torga era visita nocturna e diária de uma biblioteca, na qual os autores da filosofia portuguesa tinham lugar próprio e destaque. N'"A Criação do Mundo", o escritor revela "simplesmente, batia a uma porta que se abria a ranger" acedia a um "sótão forrado de livros e povoado de rituais". Já anteriormente, no XII volume do "Diário", Torga referindo-se à mesma biblioteca, escrevera: "Arruma Portugal numa estante". E o Portugal que se alinhava não eram só os "guias dos seus monumentos e das suas estradas, crónicas, rifoneiros, monografias etnográficas, álbuns de cerâmica e de mobiliário", "salvados do naufrágio" da Pátria a que se assistia em 1976, que aliás não tinham esta intenção, mas também todos os autores da Escola de Filosofia Portuguesa. Nós próprios, nesta biblioteca, nos iniciámos na tradição filosófica, depois de passarmos pelo existencialismo francês e alemão.

Entre as lombadas visíveis, e bem visíveis, constavam as de António Quadros. Torga para além de os consultar na biblioteca, também os lia e comentava por vezes.
 
A troca de correspondência entre os dois intelectuais mostra que existia uma admiração mútua, apesar do "complexo de esquerda" que Torga por vezes denotava e o fazia calar o que lhe ia na alma. Em carta dirigida a Quadros, Miguel Torga escreve a 1 de Maio de 1987, a propósito de "Portugal, Razão e Mistério": "Foi uma bela empresa a que meteu ombros, esta de procurar, e conseguir, abrir-nos os olhos para a evidência de um Portugal oculto, que todos, sem darmos conta, trazemos na memória e na imaginação. Cá fico, com água na boca, à espera do terceiro volume da série".

Mais tarde, a 16 de Março de 1989, sobre "A Ideia de Portugal na Literatura Portuguesa dos Últimos Cem Anos": "Li-o com o alvoroço que pode calcular, e felicito-o sinceramente por um trabalho que passa a ser consulta indispensável para quem deseja conhecer o que pensaram e disseram da nossa pátria gerações sucessivas. Se nem sempre pude estar de acordo cm alguns pontos de vista e juízos estéticos nela formulados, e se preferisse um texto mais preciso e menos repetitivo, percorri, contudo, gratamente o restante espaço da obra, rendido à lucidez que a ilumina". Falta dizer que Torga agradece as "palavras de solidariedade" que Quadros lhe dava notícia desde o Brasil.

"traço de união" entre Miguel Torga e António Quadros era a idealidade patriótica, a portugalidade se quisermos, talvez mais próximo do sentimento no primeiro; talvez mais direcionado para o espírito no segundo.

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Quadros, Torga, Eduardo Aroso e eu

A minha publicação sobre Torga e Quadros (pode ser lida aqui) suscitou uma curta nota de Eduardo Aroso que publico acompanhado pelo meu comentário.


Eduardo Aroso: Apesar de eu ter vivido sempre em Coimbra, conhecer e felizmente ser amigo do Leandro Moraes Sarmento, apenas três vezes contactei com Torga. Não importa agora o escritor enquanto pessoa, ou seja, sobre o que dizia na chamada conversa solta, importa, isso sim, (e porque aqui não há espaço para tal) salientar alguns aspectos relacionados como o texto.
É inquestionável a portugalidade (termo de António Sardinha) que atravessa toda a escrita do poeta transmontano, e – o que tende a ser esquecido ou minimizado – a descrição das relações luso-brasileiras, nomeadamente na obra "Traço de União". Sobre a retirada do mercado dessas duas obras primeiras, o não reconhecimento delas do poeta, é um facto que aconteceu com outros poetas, por exemplo, com Eugénio de Andrade. Os primeiros escritos (salvo raras excepções) são sempre o que são. É claro que Torga, como muitos outros, na época, começou por acreditar na ideia de uma Europa na qual Portugal poderia tirar a ferrugem, embora logo depois começasse a desconfiar; todavia manteve, também como muitos outros, que para se ser verdadeiro teria que se ser de esquerda, embora audaciosamente tenha escrito no "Diário" que preferia morrer a concordar com a invasão da Checoslováquia. Não sei se também com o mainstream da época comungava da ideia de que "o movimento da filosofia portuguesa" estava ligado ao Estado Novo, ideia que ainda hoje perpassa na incultura de muitos intelectuais portugueses, intelectuais esses que agora descrevem bem a catástrofe, mas que riram na década de 80, quando o filósofo Orlando Vitorino disse que Cavaco Silva (na época primeiro-ministro) não passava de um fraco contabilista! E apesar de Torga ser o escritor da nossa terra, do sangue português, até de um certo nosso benigno paganismo, da eternização do homem rural português, e porque talvez fosse essencialmente poeta e ficcionista, ele tenha escrito (obviamente com toda a legitimidade e liberdade) na obra "Portugal", que não gostava do Porto de Sampaio Bruno!
Na verdade, Miguel Torga é já um grande clássico da nossa literatura, "poeta da resistência lusíada", como disse António Quadros. E num futuro muito próximo, quando voltarmos a olhar para o território de outra maneira que não só para auto-estradas, depois de passadas certas modas e modismos, influenciados por ideologias e imprensas várias, Torga será tomado de novo como poeta da autenticidade e literariamente como a expressão do labor árduo mas profícuo do que é o espírito oficinal da escrita, em que cada palavra é submetida ao escopro da permanente e subtil atenção.
Um abraço, caro Francisco!



Francisco Moraes Sarmento: Amigo Eduardo Aroso. Agradeço o seu oportuno comentário. Os serões de Miguel Torga eram passados no sótão do nº 5 da Praceta Fernando Pessoa (casa dos meus Avós), no escritório e biblioteca do meu Tio. Tinha conhecimento de algumas obras dos escritores, poetas e filósofos de filosofia portuguesa. Estava atento ao seu patriotismo e tinha-os em boa conta. Aliás, este aspecto também pode ser testemunhado pelo seu “discípulo nocturno”, João Bigotte Chorão. Nas tertúlias, o português Miguel Torga era considerado um sábio da imensidão da nossa Terra e dos nossos bichos – nós mesmos bichos de toda a Terra, para além de “poeta da resistência lusíada”. Nós mesmos, na página “Sopro” que crei no “Diário de Coimbra” nos anos oitenta, fizemos uma homenagem à portugalidade de Torga ao fazer publicar num Dia de Portugal (não me lembro o ano) uma página completa de poesia, para espanto de muitos dos meus camaradas e penso também da direcção do jornal. Nesse dia, o “Sopro” publicava versos de Luis de Camões, Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Miguel Torga (o único vivo).
Apenas uma nota: o que se passava em minha casa era mais do que “conversa solta”. O meu Tio era uma espécie de “eminência parda” de Torga (aspecto que quase reconhece de forma velada num volume de “A Criação do Mundo”) e os seus livros eram revistos pela minha Tia Maria da Conceição. Se existem “padrinhos”, são eles.
A gestão de imagem que o poeta fazia, muito de acordo com os aspectos que referi no primeiro relato, acrescentava perturbações à vera angústia que cerceava a sua alma de patriota quanto ao destino português.

A propósito de António Quadros e Miguel Torga

A casa da minha Avó Maria e do meu Avô Chico fica ao lado da de Miguel Torga, hoje transformada em museu (Ler mais aqui). Todos os dias, o poeta era visita certa. O "vizinho" ou "sr doutor", como era tratado na intimidade familiar, conforme o tema, o caso e a circunstância, batia à porta várias vezes ao dia. À noite, depois de jantar e conversar na sala de estar, subia para sótão, onde o meu Tio, Leandro Moraes Sarmento, tinha o seu escritório e biblioteca. Quando a Igreja de Santo António dos Olivais anunciava a meia-noite subia também ao terceiro andar da moradia. Ali ficávamos a conversar pela noite, entre livros e espíritos, num espaço esconso e pouco alumiado. Predominava também o fumo e o cheiro de tabaco preto que o meu Tio fumava a compassar o pensamento e as palavras. O Torga escolhia bastas vezes a termo "cousa", usado em modo reflexivo, emprestando a plena conotação telúrica de causa, talvez sem o perceber completamente, ao que dizia. "É uma cousa..." dizia a começar a frase. No geral, ouvia o diálogo entre os dois; por vezes, dizia o que me ia na alma. Certa vez, já depois do 25 de Abril e quando o "país ardia", era evidente para todos nós, a quem a Pátria mais importa, que perigava a perduração de Portugal, Torga lamentava a ausência de norte dos políticos, dos governantes e das elites em geral. Dessa vez, decidi fazer uma proposta mais concreta: "Então se considera que Portugal está em maus lençóis porque não se faz um manifesto contra a situação assinado por escritores, poetas e filósofos?". Como que aproveitando a oportunidade advinda do silêncio surpreso, acrescentei. "Posso propor a ideia aos que conheço em Lisboa." E mencionei António Quadros, entre outros. Para nosso espanto, Torga atalhou incomodado: "António Quadros? Não! Sou um homem de esquerda e ele é de direita!". E deu-se início a uma longa discussão, a vários tons e atitudes, sobre a ideia de Pátria e se a situação de Portugal valia o "complexo de esquerda" que o poeta evidenciava. Não era a primeira vez que Torga subsumia a sua genialidade poética aos cânones da imagem pública. Já de madrugada, sem deixarmos de esgrimir argumentos, fomos descendo ao segundo andar (onde toda a família dormia), piso térreo e jardim. Na manhã seguinte, por volta das treze, hora que o meu Avô impreterivelmente fazia cumprir a todos para dar início ao almoço, a apreensão dos meus familiares e a minha expressão carrancuda marcavam o momento. Afinal, todos ouviram o que se passara durante a madrugada. A minha Tia, que tem a admiração de uma vida por Miguel Torga, interrogou-me, ao que respondi: "Sabes, o vizinho não tem o que todos os homens têm!", disse irritado e sem pensar. Perante a resposta de discutível gosto, ficámos por ali. Entretanto, o meu Avô, já muito velho e debilitado pela Doença de Parkinson, acercou-se e apoiando-se no meu braço, questionou-me: "Sabes como se chama o primeiro livro do Vizinho?". À minha negativa esclareceu-me: "A Rampa!". "Sabes como era conhecido em Coimbra?", continuou. A nova negativa, respondeu: "A Trampa! Por isso, Francisco, não te incomodes!", enquanto se afastava vagarosamente, deixando-me com um sorriso nos lábios. Efectivamente, o próprio Torga tinha a noção de que se tratava de uma obra menor e não a reconhece na sua bibliografia. Ainda estava viva na consciência do poeta a ideia segundo a qual na acção política "a cultura é de esquerda", um preconceito que lhe toldava, por vezes, a responsabilidade enquanto intelectual que vivia angustiado com o destino da Pátria, um sentimento reconhecido por António Quadros, que o considerava um "poeta da resistência lusíada" e um dos clássicos da literatura portuguesa.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Fernando Pessoa e António Ferro: um caso de admiração


Entre António Ferro e Fernando Pessoa existia, sobretudo, admiração mutua, aspecto que tem sido descurado pelos estudiosos. Dada a importância que Ferro assumiu no início Estado Novo, os propósitos políticos e algum revisionismo histórico, acompanhado pela ignorância ou o desprezo por documentos e testemunhos já conhecidos, têm desconsiderado a relação intelectual entre os dois escritores que terá tido início em 1912 e se manteve para além da morte do poeta em 1935. Ainda a propósito de Estado Novo, António Ferro desabafou, certa vez, mais ou menos o seguinte: “Em relação ao regime, sou como Pessoa em relação à literatura: tenho vários heterónimos!”

Ferro foi o elemento mais novo do grupo de “Orpheu”, onde surge como editor nos dois números publicados. Fernando Pessoa considerava-o uma voz “na terra de infiéis”, como revela na dedicatória que acompanha a oferta de “Mensagem”, assinou um protesto em defesa da peça “Mar Alto” de Ferro que tinha sido proibida, assim como publica uma curta opinião no “Missal de Trovas. Quadras dos 17 e 18 anos”, obra de Augusto Cunha e António Ferro.

Para Fernando Pessoa, Ferro era inteligente e atento. Numa carta a Armando Côrtes-Robrigues (4 de Outubro de 1914), o poeta relata uma partida que tinha preparado para Ferro com a conivência e participação de outros amigos, reveladora da cumplicidade que existia entre eles: (…) Como a única pessoa que podia suspeitar, ou melhor, vir a suspeitar, a verdade do caso Caeiro era o Ferro, eu combinei com o Guisado que ele dissesse aqui, como que casualmente, em ocasião em que estivesse presente o Ferro, que tinha encontrado na Galiza “um tal Caeiro, que me foi apresentado como poeta, mas com quem não tive tempo de falar”, ou uma cousa assim, vaga, neste género. O Guisado encontrou o Ferro acompanhado de um amigo caixeiro-viajante, aliás. E começou a falar no Caeiro como tendo-lhe sido apresentado, e tendo trocado duas palavras apenas com ele. “Se calhar é qualquer lepidóptero” disse o Ferro. “Nunca ouvi falar nele…” E, de repente, soa, inesperada, a voz do caixeiro-viajante: “Eu já ouvi falar nesse poeta e até me parece que já li algures uns versos dele”.

A 7 de Abril de 1930, Pessoa escreve o seguinte: “Meu querido António Ferro, Nem eu, nem o meu velho e imperfeito amigo Álvaro de Campos, socializamos a nossa apreciação. Mas isto, que nada despe à apreciação, também nada rasga da que é dada cooperativamente. (…) Tendo-nos nós ambos, regozijado com a inteligência e a amizade, na leitura das admiráveis entrevistas que v. levou por dentro para Espanha para as trazer por fora de lá, creio que é decente - no sentido primitivo, latino e melhor da palavra - que lh’o digamos, e lh’o digamos agora”.

Três anos mais tarde, a 11 de Março, nova carta de Pessoa, agora a propósito do livro “Salazar”: “Meu querido António Ferro: (…) Muito obrigado pelo exemplar, triplicemente dedicado, do “Salazar”, que agora mesmo recebi. (…) Ela é de inteira admiração pela firmeza subtil e a mestria publicitária – não vai nada que não seja elogioso na alma d’este adjectivo corporalmente dúbio – com que v. cumpriu para consigo mesmo um largo dever para com o público”.

O envolvimento de Pessoa com a família Quadros Ferro também teve contornos mais íntimos como viria a revelar Fernanda de Castro, escritora, poetisa e mulher de António Ferro.  

Fernanda de Castro, no seu livro “Ao Fim da Memória”, publicado em 1987, sugere a existência de um sentimento afectivo por parte de Fernando Pessoa: “Era um homem calado, ensimesmado, de uma timidez que chegava a incomodar-nos. Falei com ele bastantes vezes porque era amigo duma irmã de minha mãe, a minha tia Castelo, e porque algumas vezes o encontrei numa livraria ou em casa dos seus amigos Teixeira de Azevedo. Não gosto muito de falar de Fernando Pessoa por uma razão delicada, que a mim própria se afigura absurda: começaram a dizer-me, daqui e dali, que ele gostava de mim e que se afastava propositadamente por eu ser casada com o António e ele ser muito seu amigo. Nada disto me parece verdade porque, por mais introvertido, mais discreto que seja um homem, quando está apaixonado acaba sempre por revelar-se através de um gesto, de um olhar, de uma entoação, de um sorriso que os outros não percebem mas que a mulher capta sempre. O que eu sabia, sim, é que ele gostava dos meus versos e que o disse a várias pessoas, o que a própria irmã confirmou há meses ao meu filho António, quando da comemoração, na Fundação Gulbenkian, do quinquagésimo aniversário da sua morte. Isto agradava-me, é claro, mas foi por estas razões que tinha resolvido suprimir o Fernando Pessoa das minhas Memórias. Perante a insistência de alguns e não tendo nada a esconder, resolvi desta vez explicar o meu silêncio, que certas pessoas e até um certo crítico acharam inexplicável”.

Um ano após a sua morte, Ferro confirmava a sua admiração pelo poeta em artigo publicado no “Diário de Notícias”, publicado a 30 de Novembro de 1936. “Detestando o barulho, a publicidade, o acotovelamento, este intelectual puro, quis sempre viver, ao contrário do que pensam alguns, como Fernando Ninguém…Mas foi o tempo o confirmará uma verdadeira pessoa, uma grande pessoa!...escrevia António Ferro que acrescenta que "um poeta grande que muitos admiram, alguns compreendem e poucos conhecem, cujos versos serão eternos!.

Estes curtos comentários desmentem os que procuram encontrar entre Ferro e Pessoa uma relação marcada pelo aspecto político o nacionalismo e a construção do ideário do Estado Novo.


Lembramos que a exposição "De Fernando Ninguém a Fernando Pessoa, A Presença de Fernando Pessoa na Fundação António Quadros" fica patente na Biblioteca Municipal de Rio Maior, até 30 de Julho.

sábado, 14 de junho de 2014

Fernando Pessoa e a Família Quadros Ferro








A influência da família Quadros Ferro no destino da obra de Fernando Pessoa tem sido um aspecto pouco atendido por historiadores e investigadores.

Pessoa era um intelectual conhecido apenas em alguns círculos restrictos e, mesmo assim, a sua aparência estranha e taciturna era dada à caricatura pelos seus amigos e companheiros de “viagem” Almada Negreiros ou Teixeira Cabral. Também filósofos e poetas como Leonardo Coimbra, Teixeira de Pascoaes ou mesmo José Régio, "guardavam suas distâncias" em relação a Fernando Pessoa, como nos lembrava Orlando Vitorino.

Fernando Pessoa era um autor de “textos sem morte”, para aproveitar uma expressão de António Ferro, talvez a sublinhar a eternidade dos seus versos, mas que servem ainda para ilustrar os textos que se amontoavam, com sucessivas hesitações e emendas, e um autor sem obra feita para além de escritos dispersos em algumas publicações.
A amizade e admiração entre eram sentimentos mútuos entre António Ferro e Fernando Pessoa, circunstâncias que ditaram um dos objectivos de Ferro quando passou a dirigir o Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), em 1933. No ano seguinte, criou diversos prémios literários, um dos quais para permitir que Fernando Pessoa fosse “descoberto para a sociedade em geral”, não tanto pelo seu “nacionalismo liberal e místico” que pouco tinha a ver com filosofia do Estado Novo, mas pela sua genialidade e inspiração poéticas. Referimo-nos à primeira edição do Prémio Antero de Quental (poesia).
Na acta da reunião que decidiu os vencedores do referido concurso, António Ferro sublinharia a sua grande satisfação por ver o júri reconhecer e homenagear o mérito da obra de Pessoa, “trazendo à luz de uma maior publicidade um nome de marcado prestígio nos cenáculos intelectuais mas que até então voluntariamente vivera num isolamento distante”. Também consta naquele documento a intenção de “aproveitar a escolha do júri para demonstrar a Fernando Pessoa o singular apreço que a sua rara personalidade merece a todos espíritos cultos”.
Foi este concurso que motivou o aparecimento da obra que hoje conhecemos como “Mensagem”, o único livro publicado por Fernando Pessoa em vida.
Com o falecimento dos dois protagonistas, a saga pessoana da família Quadros Ferro ganhou outra vida, desta vez no domínio do pensamento. Referimo-nos, primeiro, ao fascínio que as personagens pessoanas geraram no espírito de António Quadros; depois, à sua sublimação pelo pensamento que transformaram este pensador no mais sério e sistemático intérprete do poeta.
Na exposição “De Fernando Ninguém a Fernando Pessoa. A presença de Fernando Pessoa na Fundação António Quadros”, patente na Biblioteca Municipal Laureano Santos, em Rio Maior, e organizada por aquela instituição, mostra-se em forma livro os modos como a ausência se foi vertendo numa presença decisiva. De amigo da família, Fernando Pessoa tornou-se num daimon, ou seja, num ente espiritual, de António Quadros. O que dizer, quando já cego, teimava em escrever “A Paixão de Fernando P.”, inspirado no amor de Fernando Pessoa por Ofélia ou do desabafo que deixou já quando o espectro da Morte o visitava: Para dar o essencial de Fernando Pessoa, tenho de dar o essencial de mim. Às vezes, chego a pensar que Fernando Pessoa é uma presença de que não me posso livrar. Glosando Pessoa, diria que Quadros chega a fingir que é Pessoa, Pessoa que deveras sente.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

De Fernando Ninguém a Fernando Pessoa


“Detestando o barulho, a publicidade, o acotovelamento, este intelectual puro, quis sempre viver, ao contrário do que pensam alguns, como Fernando Ninguém… Mas foi – o tempo o confirmará – uma verdadeira pessoa, uma grande pessoa!”...
escreve António Ferro sobre Fernando Pessoa. Um poeta “grande” que “muitos admiram, alguns compreendem e poucos conhecem”, cujos versos “serão eternos”.


Bastariam estes curtos comentários escritos a propósito do primeiro aniversário da morte do Autor da “Mensagem”, publicados a 30 de Novembro de 1936, no “Diário de Notícias”, para desmentir os que procuram encontrar entre Ferro e Pessoa uma relação marcada pelo aspecto politico – o nacionalismo – e a construção do ideário do Estado Novo.
A perspectiva política e algum revisionismo histórico, acompanhado pela ignorância ou o desprezo por documentos e testemunhos já conhecidos, têm obstruído o profundo conhecimento de uma amizade e admiração entre os dois intelectuais que terá tido início em 1912 e se manteve para além da morte do poeta em 1935. A António Ferro, deve Fernando Pessoa o reconhecimento público da sua genialidade poética e do valor literário da sua obra, nomeadamente a descoberta de “Mensagem”, única obra publicada em vida.
O envolvimento de Pessoa com a família Ferro também teve contornos mais íntimos como revela Fernanda de Castro, escritora, poetisa e mulher de António Ferro, anos mais tarde.
Através da sua iniciação na Escola da Filosofia Portuguesa, associada à tradição familiar, António Quadros sublimou o seu fascínio pela figura misteriosa do amigo de família numa hermenêutica do homem e da obra, do pensamento e do génio. De amigo da família, Fernando Pessoa tornou-se o companheiro espiritual de António Quadros que, ao “Diário de Notícias”, diria pouco antes de falecer: "Para dar o essencial de Fernando Pessoa, tenho de dar o essencial de mim. Às vezes, chego a pensar que Fernando Pessoa é uma presença de que não me posso livrar".
A propósito do 126º aniversário do nascimento do poeta, “A presença de Fernando Pessoa na Fundação António Quadros” mostra a influência da família Quadros Ferro no destino da obra literária de Fernando Pessoa.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Filosofia portuguesa na Madeira

Funchal, 7 de Junho de 1988: Francisco Moraes Sarmento, Orlando Vitorino, António Quadros e António Braz Teixeira.  Para participar num colóquio sobre a filosofia portuguesa e a autonomia regional.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

A propósito de lugares minhotos

 Certa vez regressei a Santo Estevam, pequena aldeia situada entre Chaves e a fronteira, no norte de Portugal. O chamamento do campo fazia parte dos meus anos de aprendizagem, mas as curvas da vida acabaram por desviar a minha atenção para outros mundos. Foi com surpresa que cheguei a uma aldeia com acessos alcatroados e sinalização, coisas que fazem longínqua as memórias da estrada batida e, principalmente, a nuvem de pó que anunciavam visitas ou tão somente o regresso do meu Tio Chico a casa no final do dia. 

O mais estranho foi mesmo a ausência de animais nas ruas: nem galinhas, nem patos ou gansos, nem porcas e os seus recos, nem vacas, burros, mulas ou cavalos. Longe vão os tempos em que corria até ser vencido pelo cansaço atrás das galinhas ou fugia das investidas das fémeas com crias por ter pisado, por incúria, terrenos proibidos.

O ecosistema estava alterado e tinha tornado a "minha" aldeia cheia de vida e graça, num deserto de gente a animais. Só o edificado ainda permanecia com alguma memória dos tempos em que pessoas e animais viviam faziam parte do mesmo cosmos. Claro, pontuado com alguns estilos a roçar o mau gosto. Agora, Santo Estevam, nome de antigos pergaminhos, é um aldeia limpinha, asseada, quase asséptica.

À perplexidade que, sem demora, exprimi, devolveu o meu Tio uma explicação: "As novas regras comunitárias proíbem animais à solta nas ruas".

Vem esta história a propósito do que observo nos lugares do Minho e na Serra do Gerês: animais à solta. Os garranos curtos de patas, rústicos e resistentes aos obstáculos de montanha, fitam-nos desconfiados e mantém sempre uma distância prudente em relação aos estranhos; o gado de raça barrosã sobressai na paisagem verdejante pela corpulência, a armadura em forma de lira, grande e pontiaguda, e pelagem castanha clara, cor de palha ou acerejado, são mais dóceis, teimosos e não têm pressa. Todos parecem sem dono e sabem os trilhos que os levam a bom porto.

Num relâmpago, emergem de nenhures saudades da velha aldeia, Santo Estevam da minha adolescência e dum tempo que os animais integravam um outro cosmos, em que os aqueciam a casa, davam alimento e faziam companhia. Mais humano e harmonioso porque todos sabiam a distinção entre o homem e o animal.

terça-feira, 27 de maio de 2014

"Não é a mesma pessoa!"

No início da minha vida de jornalista, trabalhava no semanário "Tempo", numa altura em que António Quadros escrevia semanalmente uma secção literária, a "Ideias e Livros" (anos oitenta) . Um dia, Peixe Dias, chefe de redacção, decidiu despedir-me, ideia que não foi consensual no directório do jornal. 

À falta de mais argumentos, João Isidro, sub-chefe de redacção, com a edição da semana em punho, acercou-se de Peixe Dias e disse-lhe: "Lê o que o António Quadros escreve sobre o Moraes Sarmento! Estás a despedir a pessoa errada!".  Confrontado com a situação e depois de ler o trecho em causa, Peixe Dias rematou: "Não é a mesma pessoa!" E assim fui parar ao Semanário que iniciava a sua publicação.

Num artigo sobre as revistas culturais e literárias, Quadros escreveu o seguinte: "Ensaio é uma revista de jovens universitários, dirigida por Francisco Moraes Sarmento. Distingue-se, para melhor, da maioria das publicações do género, pela atenção prestada ao pensamento, pela preocupação de uma reflexão filosófica, pela coragem das suas posições, bastantes heterodoxas em relação às linhas habituais de um vanguardismo em geral teleguiado por modelos pré-determinados e extrínsecos à nossa cultura".

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Texto publicado no Diário de Notícias sobre Orlando Vitorino

Orlando Vitorino
ou a filosofia como acto de liberdade

O décimo aniversário sobre o falecimento de Orlando Vitorino (1922-2003), um dos filósofos mais decisivos da Casa de Portugal, passa na próxima semana. Epígono de Álvaro Ribeiro e José Marinho, é um dos propositores da Escola de Filosofia Portuguesa, continuadora da “Renascença Portuguesa” de Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes.

De forma mais ou menos explícita, a filosofia portuguesa sistematizou os seus princípios, conceitos e ideias, na senda da tradição clássica, formalizando uma visão do homem e do mundo, cuja autenticidade assegura a sua transmissão através de sucessivas gerações de filósofos e poetas

Para a brevidade deste artigo, e se quisermos anotar algumas ideias essenciais desta tradição, diríamos que o magistério leonardino nos deixou um sistema a que deu o nome de Criacionismo e postulou duas premissas: a filosofia é o órgão da liberdade o homem é um obreiro do mundo a fazer. O seu discípulo Álvaro Ribeiro, sistematizou a tese da existência da filosofia portuguesa, perante a adversidade geral das instituições da cultura oficial e a concordância de poetas e filósofos, e deixou para o futuro difícil noção: o homem é um composto de corpo, alma e espírito que resulta numa “razão animada", contrariando o preconceituoso conceito de “anima racional”. A filosofia é a arte de pensar e não há filosofia sem teologia são outras das premissas de um dos mais fecundos filósofos portugueses, que Orlando intitulou “Mestre dos que sabem”, lembrando o epíteto que Platão atribuiu a Aristóteles. Para além do empenhamento político que implicavam estes filósofos na defesa de causas retiradas do seu pensamento filosófico, também é comum aos dois, a reflexão sobre as categorias aristotélicas e o pensamento categorial dos predicados e atributos. Estes aspectos impressionam de forma definitiva e exclusiva a tradição central da filosofia portuguesa, distinguindo na literatura um estilo filosófico, garantido por uma lógica que é também uma teoria do pensamento. Desde a sua intuição inicial, este estilo literário resultou numa expressão filosófica sem cedências ao equívoco conceptual e nocional. Não obstante a sua proposição por vezes enigmática, a contribuição de José Marinho para a tradição da filosofia portuguesa advém seus postulados que firmam a verdade como o que mais importa ao pensamento.

Nesta tradição, situa-se Orlando Viitorino cujo pensamento se encontra exposto em diversas publicações, das quais ressaltam “Refutação da Filosofia Triunfante” e “Exaltação da Filosofia Derrotada”, obras completadas por uma terceira, por publicar, que o autor intitulou “As Teses da Filosofia Portuguesa", e que sintetizaria um sistema de filosofia. Não obstante, algumas das teses foram já expostas em artigos, como “A Teoria da Verdade de José Marinho” e a “Doutrina do Espírito de Álvaro Ribeiro", publicados na Leonardo, revista de filosofia portuguesa, nos quais enuncia a concordância principial dos dois métodos da arte de pensar. No pensamento de Orlando Vitorino caduca a referência, tão ao gosto dos que não acedem ao pensamento categorial, a tese das “duas vias” da Escola Portuguesa, referindo-se uma a Álvaro Ribeiro, outra a José Marinho. Neste autor, o magistério leonardino realiza um movimento analógico e proporcional, qual espiral, num ideário que Orlando designa a como um "idealismo realista” e que completa um ciclo da filosofia clássica. Diz o filósofo que ciclo encerra todo o saber, a partir do qual se fazem actualizações ou, em linguagem leonardina, cristalizações, ou a sua decadência, coisificações, dessa tradição perene e original. "Não há nenhum acréscimo substancial de saber ou ciência entre a filosofia aristotélica, o cristianismo e a filosofia criacionista ", escreve Orlando Vitorino.

 
Filosofia Triunfante e Filosofia Derrotada

 
Para marcar a situação cultural e a divergência entre a filosofia moderna e a filosofia portuguesa, Orlando Vitorino designou as de "Filosofia Triunfante” e "Filosofia Derrotada". No livro dedicado à primeira, o filósofo enuncia o erro que constitui todo o pensamento moderno. Desde logo, porque nega a eternidade do mundo, privando-o do seu carácter necessário e impondo limites, onde o pensamento clássico concebia perenidade e inviolabilidade. No mundo limitado e desnecessário, e por isso, todo ele passível de ser explorado, a finalidade dada ao pensamento e desenvolver técnicas domínio que o coloquem ao serviço e às mãos do homem. O mundo e a natureza são ilusões, mera fenomenologia, para o pensamento moderno. A última expressão da negação do mundo e da natureza, é a afirmação da tecnologia como fundamento ôntico de toda a existência.

Dada a concordância de todo o pensamento, a consideração da eternidade do mundo é uma condição do pensamento categorial. Não obstante, o método partir do particular para o geral, ou se quisermos, do fim para o princípio, a arte de pensar concebe desde o infinito e o inviolável, não como decadência ou degradação do espírito, mas como realização positiva, necessária e transcendente da finalidade, ou se preferirmos, da Verdade. Como nos ensina a lógica, a afirmação universal é uma condição da verdade. Os princípios predicados permitem a dedução de atributos e, assim, participar na existência das coisas, que até aqui, sem consciência delas próprias, apenas, só mera virtualidade e disposição. O pensamento cateqorial, que é sempre pensamento da verdade, e racional e necessário à realização do mundo porque atribui existência as coisas, manifestando o que lhes é próprio. A razão, elemento operativo, é um acordo existencial e um factor de amor e perfeição. A filosofia portuguesa é uma religião da razão.

A confusão entre o que é determinado e o que é limitado, aliado ao espectáculo do mundo e a sensitividade e a sentimentalidade, parecem não garantir o que nos é dado aos sentidos mas o movimento de corrupção, se carece do homem para se realizar, não lhe pertence. Como só se pensa o que é estável, a dedução da irrealidade do sensível apresenta-se como verdadeira.

O mínimo pensamento que socorre toda a existência não é compatível e com a coisificação do limite, porque então, seria suposto que esse pensamento se esgote na plena existência. Sem fundamento lógico o limite é uma negação e as relações perpétuas retiram-se da eternidade.

As tentativas de negar a eternidade do mundo são o primeiro passo para a destituição do pensamento e a valorização da vontade e da acção, como garante de todo o real, ser e existência.

 
Os mais apressados viam na exposição desta teses clássica, aliás pouco desenvolvida na obra do filósofo, mas de primordial importância para compreender a original do conceito de propriedade que determina todo o seu pensamento, a negação dos dias da criação e, portanto, de Deus criador. A leitura de quaisquer escrituras sagradas segundo a letra e a positividade da narrativa, acaba por obstruir a teleologia teológica e dificulta a compreensão da heterodoxia dos filósofos segundo uma teologia que não descansa na fé. Além do mais, a criação do mundo supõe um nada, o “não-ser” ou uma “não-existência”, conveniente à ontologia como fundamento de todo o real que, associada à tese da morte de Deus, afasta a natureza da verdade e abandona o homem a si próprio.

Demora e Orlando Vitorino na demonstração do imenso erro das teses da filosofia triunfante, se quisermos, da filosofia moderna, que resultam nas diversas formas de materialismo moderno que se desenvolvem na história e na cultura. O resultado, aliás já reconhecido pelos pensadores do desespero e do temor, torna a vida humana insuportável e obstrui a realização da felicidade e do bem. Entre o saber e o ignorar, destituída a verdade e a razão do acordo amoroso e universal, o erro, aqui um intermediário ou demónio, instiga o mal no teatro do mundo.

 
Eternidade e propriedade

 
Uma das ideias mais importantes de Orlando Vitorino, um dos pensadores mais decisivos da Filosofia Portuguesa, é a de propriedade. Brevemente explicitada na “Exaltação da Filosofia Derrotada", este conceito firma e organiza o seu sistema filosófico. Se bem que a sua proposição seja enunciada nos capítulos dedicados à economia e ao direito, é possível deduzir o carácter principial desta noção de propriedade no pensamento do filósofo.

Esta substância, diríamos o cosmolóqica, determina toda a existência e da sua modalidade, que não é cisão, nem separação, resulta o género de relação que o homem tem com o mundo. A propriedade é a forma da existência, mas precede-a na virtualidade e potencialidade. E, como toda a forma, e perfeita e um advento da verdade. A propriedade é o que é próprio das coisas. Se num aspecto, nelas radica e delas não se separa; noutro, carece da participação do homem para se realizar, na medida em que as coisas não têm consciência ou o saber de si. Nas palavras do filósofo, as "para que se saibam e depois se afirmem e manifestem no que lhes é próprio, na sua propriedade”. A liberdade, que é a posição dos fins, faz manifestar a finalidade das coisas que, até aqui, permaneciam inertes, "uma simples presença. O homem, a razão humana ou actos de razão (as palavras), é um momento do ser que transita para a existência e revela a sua propriedade. A sua necessidade advém do mundo e não de Deus, que na sua omnipotência o poder a dispensar, não informando o mundo.

Diz Orlando, que o homem "conhece assim que a existência de cada coisa envolve toda a sua indivisível unidade, conhece que, manifestada essa existência, a coisa se torna inalienável, conhece enfim que, estabelecida a relação, ela não é instantânea e destruidora, mas tem de ser perpétua. Por analogia, aos atributos que define para a propriedade – indivisível, inalienável e perpetua -, Orlando faz corresponder três modos para a substancia que se realizam em graus diferentes: absoluta, a perfeita e a imperfeita: o primeiro, tem a sua imagem no corpo do homem, identifica ser e existir, é o arquétipo das outras duas formas de propriedade e identifica-se com a liberdade: o segundo, refere-se às coisas naturais; a terceira, às coisas industriais, ou que são produzidas pela máquina.

Esta concepção não se garante se for abandonada a consideração segundo a qual o mundo e eterno. Prestes, se da precedência e realidade ao “não-ser”, algo que não pode ser pensado porque não tem propriedade. Por outro lado, as coisas são para serem e existirem, pelo que esse "não-ser” e efémero e provisório e concebe a criação do homem como livre arbitrio de Deus ou o acaso das forças cósmicas. No lance, aduzimos que para este autor o mal também é efémero e, acrescentamos, um equivalente “não-ser".

O pensamento só pensa a verdade e o bem e por conseguinte, todas as finalidades são tomadas como boas. O carácter principial do bem não se coaduna com cisões e a equivalência dos dois termos bem e mal - contradiz a natureza humana. O bem é um princípio, 0 mal uma determinação no mundo.

A história e a cultura revelam a ilusão e mostram o erro da razão humana. Para a entificação do mal conoorre a carência do pensamento cateqorial nas determinações do espírito, da verdade e da liberdade. O Espírito, a Verdade e a Liberdade, predicados análogos aos atributos indivisível, inalienável e perpétua., organizam o sistema filosófico de Orlando Vitorino segundo três aspectos: as condições do pensar, a representação do mundo e a realização dos princípios. Aquela trilogia é a teleologia que determina a obra deste pensador, assim como o seu movimento operativo. do qual nos deixou testemunho na economia, na política e na educação. Nesta dedução, Orlando Vitorino seguiu o preceito de Leonardo, segundo o qual a filosofia e o órgão de liberdade, elemento do espírito que a razão assegura e revela.

Repto às novas gerações

O pensamento de Orlando Vitorino promove a esperança. A síntese operativa que faz ao nível da educação, da economia e do direito realiza e introduz a liberdade no convívio entre os homens. Às gerações futuras, Orlando Vitorino esclareceu as tendências modernas e enunciou as condições do pensamento filosófico. As suas noções desenvolvem um ideário que possibilita e situa a visão da felicidade para a condição actual do homem. Efectivamente, vivem-se hoje acontecimentos que assinalam o transito para uma nova Era e um novo estilo de vida, à semelhança da “revolução industrial”. Este transito necessita de uma visão orientadora, ou se preferirmos, de um pensamento categorial para que sejam dados aos instrumentos, nomeadamente a técnica e a tecnologia finalidades que não apontem para o fim do mundo, nem tornem a vida insuportável ou espalhem a infelicidade. O desígnio da história deu um sinal, ao fazer da Internet um instrumento de liberdade. A filosofia portuguesa é o repto às novas gerações de filósofos e poetas. Divulgar a tradição pode ser trabalho culturalmente meritório, mas não o operacionalizar para os dias de hoje e não seguir o exemplo dos mestres que às causas fizeram corresponder sistemas filosóficos e corolários sociais e políticos, é recusar as responsabilidade espirituais para com a Pátria que vive, de há multo, um crepúsculo outonal.