segunda-feira, 30 de junho de 2014

Quadros, Torga, Eduardo Aroso e eu

A minha publicação sobre Torga e Quadros (pode ser lida aqui) suscitou uma curta nota de Eduardo Aroso que publico acompanhado pelo meu comentário.


Eduardo Aroso: Apesar de eu ter vivido sempre em Coimbra, conhecer e felizmente ser amigo do Leandro Moraes Sarmento, apenas três vezes contactei com Torga. Não importa agora o escritor enquanto pessoa, ou seja, sobre o que dizia na chamada conversa solta, importa, isso sim, (e porque aqui não há espaço para tal) salientar alguns aspectos relacionados como o texto.
É inquestionável a portugalidade (termo de António Sardinha) que atravessa toda a escrita do poeta transmontano, e – o que tende a ser esquecido ou minimizado – a descrição das relações luso-brasileiras, nomeadamente na obra "Traço de União". Sobre a retirada do mercado dessas duas obras primeiras, o não reconhecimento delas do poeta, é um facto que aconteceu com outros poetas, por exemplo, com Eugénio de Andrade. Os primeiros escritos (salvo raras excepções) são sempre o que são. É claro que Torga, como muitos outros, na época, começou por acreditar na ideia de uma Europa na qual Portugal poderia tirar a ferrugem, embora logo depois começasse a desconfiar; todavia manteve, também como muitos outros, que para se ser verdadeiro teria que se ser de esquerda, embora audaciosamente tenha escrito no "Diário" que preferia morrer a concordar com a invasão da Checoslováquia. Não sei se também com o mainstream da época comungava da ideia de que "o movimento da filosofia portuguesa" estava ligado ao Estado Novo, ideia que ainda hoje perpassa na incultura de muitos intelectuais portugueses, intelectuais esses que agora descrevem bem a catástrofe, mas que riram na década de 80, quando o filósofo Orlando Vitorino disse que Cavaco Silva (na época primeiro-ministro) não passava de um fraco contabilista! E apesar de Torga ser o escritor da nossa terra, do sangue português, até de um certo nosso benigno paganismo, da eternização do homem rural português, e porque talvez fosse essencialmente poeta e ficcionista, ele tenha escrito (obviamente com toda a legitimidade e liberdade) na obra "Portugal", que não gostava do Porto de Sampaio Bruno!
Na verdade, Miguel Torga é já um grande clássico da nossa literatura, "poeta da resistência lusíada", como disse António Quadros. E num futuro muito próximo, quando voltarmos a olhar para o território de outra maneira que não só para auto-estradas, depois de passadas certas modas e modismos, influenciados por ideologias e imprensas várias, Torga será tomado de novo como poeta da autenticidade e literariamente como a expressão do labor árduo mas profícuo do que é o espírito oficinal da escrita, em que cada palavra é submetida ao escopro da permanente e subtil atenção.
Um abraço, caro Francisco!



Francisco Moraes Sarmento: Amigo Eduardo Aroso. Agradeço o seu oportuno comentário. Os serões de Miguel Torga eram passados no sótão do nº 5 da Praceta Fernando Pessoa (casa dos meus Avós), no escritório e biblioteca do meu Tio. Tinha conhecimento de algumas obras dos escritores, poetas e filósofos de filosofia portuguesa. Estava atento ao seu patriotismo e tinha-os em boa conta. Aliás, este aspecto também pode ser testemunhado pelo seu “discípulo nocturno”, João Bigotte Chorão. Nas tertúlias, o português Miguel Torga era considerado um sábio da imensidão da nossa Terra e dos nossos bichos – nós mesmos bichos de toda a Terra, para além de “poeta da resistência lusíada”. Nós mesmos, na página “Sopro” que crei no “Diário de Coimbra” nos anos oitenta, fizemos uma homenagem à portugalidade de Torga ao fazer publicar num Dia de Portugal (não me lembro o ano) uma página completa de poesia, para espanto de muitos dos meus camaradas e penso também da direcção do jornal. Nesse dia, o “Sopro” publicava versos de Luis de Camões, Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Miguel Torga (o único vivo).
Apenas uma nota: o que se passava em minha casa era mais do que “conversa solta”. O meu Tio era uma espécie de “eminência parda” de Torga (aspecto que quase reconhece de forma velada num volume de “A Criação do Mundo”) e os seus livros eram revistos pela minha Tia Maria da Conceição. Se existem “padrinhos”, são eles.
A gestão de imagem que o poeta fazia, muito de acordo com os aspectos que referi no primeiro relato, acrescentava perturbações à vera angústia que cerceava a sua alma de patriota quanto ao destino português.

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