quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Serões Conimbricenses: a descoberta

O Ivo é uma personagem. Afirmá-lo não é negar a sua existência ou realidade. Aos da sociologia diria que come, dorme e ama, vive como qualquer um. Mas o que fascina é a sua personalidade.

 
É uma alma dorida e o sofrimento a que se expõe é-lhe imposto por um acto de sageza inteligente. Em tempos, reconheceu a sua inquietação nos escritores da escola francesa e no existencialismo francês e alemão. A via literária mostrou-lhe a inevitabilidade do ideal pátrio. E com ele, os filósofos portugueses. É uma ave nocturna e a claridade matinal, límpida e ainda inocente, fere-lhe o rosto e ofusca-lhe a visão.


Nos anos de juventude, o Ricardo frequentava a biblioteca do Ivo, primeiro, fascinado pelas personagens das histórias aos quadradinhos; depois, as lombadas dos livros foram motivo de curiosidade e, mais tarde, de interesse e entusiasmo. Aos poucos, os autores portugueses despertaram-lhe a imaginação. Fantasmas, anjos ou demónio, emergiam de nenhures, incomodavam a alma e inquietavam o espírito. Nunca mais encontrou sossego e, desde então, trilhou o destino dos solitários. O cheiro a papel velho tornara-se familiar e até indispensável ao correr dos dias. Por vezes adormecia, na pequena cama posta no lugar esconso do sótão. Ocasiões houve em que se esquecia do tempo, do cansaço e da fome. Sabia dos convívios nocturnos, mas o tempo de serão era sagrado.

 
Ali, só acediam, para além do Ivo, com os seus deuses e demónios, o João, o Leandro e o Pedro. Os serões decorriam na cozinha em redor de uma velha mesa de madeira pintada a branco e um tampo de mármore comum, que se convertia com os rituais da noite num altar de iniciação.

Durante as suas deambulações pelo sótão, uma cadeira de madeira e cabedal gravado com duas iniciais chamou-lhe a atenção: não estava coberta de pó e primava pela ausência de teias de aranha. O lugar e a posição pareciam intencionais. Ao aproximar-se a vista deteve-se numa frecha que se abria numa velha tábua. À medida que se acercava reconheceu as vozes que se esgueiravam pelo buraco. À espreita, conseguia apreciar o que supunha tão secreto e misterioso.

 
Na mesa, copos, pão, vinho, presunto, enchidos diversos, degustados ao ritmo da conversa e sem pressa pela noite dentro. Aqui e ali, bancos de madeira, também pintados a branco, eram utilizados e dispostos de acordo com o entusiasmo dos diálogos. A janela entreaberta permitia a circulação de ar, frio e cortante, que espantava o fumo que teimava em adensar o ambiente. Por vezes, um gato preto e peludo aninhava-se no parapeito. Conhecedor dos hábitos dos serões, o bicho ali ficava a jeito do ar mais quente. Teimoso observava até cerrar os olhos. As suas orelhas vigiavam os movimentos dos convivas e as tonalidades vocais.


A paciência do animal é sempre recompensada! No dealbar da noite, quando a aurora já se adivinha, sempre era presenteado com as sobras da noite. Chamava-se “Tareco”, soube mais tarde.

Numa dessas escutas, ouviu ao Pedro dizer algo que captou a atenção. Chegou de livro em punho e dirigiu-se ao anfitrião: “Oh Ivo!, trago um livro que descreve uma personagem muito semelhante ao que és ou procuras ser.” E leu para todos, um trecho da Criação do Mundo de Miguel Torga. “Uma personagem? Igual ao Ivo?” Perguntava-se a si próprio, a desejar que a leitura terminasse.

 
Depressa demandou o livro na biblioteca. “Poesia... Camões, Junqueiro, Pascoaes, Pessoa, Almada...Torga, por fim!” dizia, enquanto o dedo acompanhava à presa o percurso ansioso dos olhos nas lombadas. Lá estavam todos os volumes da Criação do Mundo!

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