O Ivo é uma personagem. Afirmá-lo
não é negar a sua existência ou realidade. Aos da sociologia diria que come,
dorme e ama, vive como qualquer um. Mas o que fascina é a sua personalidade.
É
uma alma dorida e o sofrimento a que se expõe é-lhe imposto por um acto de sageza
inteligente. Em tempos, reconheceu a sua inquietação nos escritores da escola
francesa e no existencialismo francês e alemão. A via literária mostrou-lhe a
inevitabilidade do ideal pátrio. E com ele, os filósofos portugueses. É uma ave
nocturna e a claridade matinal, límpida e ainda inocente, fere-lhe o rosto e
ofusca-lhe a visão.
Nos anos de juventude, o Ricardo frequentava a biblioteca do Ivo, primeiro,
fascinado pelas personagens das histórias aos quadradinhos; depois, as lombadas
dos livros foram motivo de curiosidade e, mais tarde, de interesse e
entusiasmo. Aos poucos, os autores portugueses despertaram-lhe a imaginação.
Fantasmas, anjos ou demónio, emergiam de nenhures, incomodavam a alma e
inquietavam o espírito. Nunca mais encontrou sossego e, desde então, trilhou o
destino dos solitários. O cheiro a papel velho tornara-se familiar e até
indispensável ao correr dos dias. Por vezes adormecia, na pequena cama posta no
lugar esconso do sótão. Ocasiões houve em que se esquecia do tempo, do cansaço
e da fome. Sabia dos convívios nocturnos, mas o tempo de serão era sagrado.
Ali,
só acediam, para além do Ivo, com os seus deuses e demónios, o João, o Leandro
e o Pedro. Os serões decorriam na cozinha em redor de uma velha mesa de madeira
pintada a branco e um tampo de mármore comum, que se convertia com os rituais
da noite num altar de iniciação.
Durante as suas deambulações pelo sótão, uma cadeira de madeira e cabedal
gravado com duas iniciais chamou-lhe a atenção: não estava coberta de pó e
primava pela ausência de teias de aranha. O lugar e a posição pareciam
intencionais. Ao aproximar-se a vista deteve-se numa frecha que se abria numa
velha tábua. À medida que se acercava reconheceu as vozes que se esgueiravam
pelo buraco. À espreita, conseguia apreciar o que supunha tão secreto e
misterioso.
Na
mesa, copos, pão, vinho, presunto, enchidos diversos, degustados ao ritmo da
conversa e sem pressa pela noite dentro. Aqui e ali, bancos de madeira, também
pintados a branco, eram utilizados e dispostos de acordo com o entusiasmo dos
diálogos. A janela entreaberta permitia a circulação de ar, frio e cortante,
que espantava o fumo que teimava em adensar o ambiente. Por vezes, um gato
preto e peludo aninhava-se no parapeito. Conhecedor dos hábitos dos serões, o
bicho ali ficava a jeito do ar mais quente. Teimoso observava até cerrar os
olhos. As suas orelhas vigiavam os movimentos dos convivas e as tonalidades
vocais.
A paciência do animal é sempre recompensada! No dealbar da noite, quando a
aurora já se adivinha, sempre era presenteado com as sobras da noite.
Chamava-se “Tareco”, soube mais tarde.
Numa
dessas escutas, ouviu ao Pedro dizer algo que captou a atenção. Chegou de livro
em punho e dirigiu-se ao anfitrião: “Oh Ivo!, trago um livro que descreve uma
personagem muito semelhante ao que és ou procuras ser.” E leu para todos, um
trecho da Criação do Mundo
de Miguel Torga. “Uma personagem? Igual ao Ivo?” Perguntava-se a si próprio, a
desejar que a leitura terminasse.
Depressa
demandou o livro na biblioteca. “Poesia... Camões, Junqueiro, Pascoaes, Pessoa,
Almada...Torga, por fim!” dizia, enquanto o dedo acompanhava à presa o percurso
ansioso dos olhos nas lombadas. Lá estavam todos os volumes da Criação do Mundo!
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