quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Místico extraviado

“És um místico extraviado!”, atalha o João, companheiro de serão em casa do Ivo. A expressão, glosa uma ideia de José Marinho, sublinha a condição espiritual do pensamento filosófico, ganhou voz surpresa, espontânea e conclusiva, a rematar o diálogo.

Do rumo da conversa, são esparsas e imprecisas as vozes da memória. “Afinal, diz o Ivo que se juntara ao convívio, sempre procuras a expressão segura no conceito e estável nas teses e as tuas interrogações sempre assumiram cariz, digamos racionalista se não te ofenderes com o epíteto, agora espantas com a confissão de uma experiência mística!”


O olhar perspicaz do João, aliado a um humor inteligente e subtil, parecia querer dizer: “És um envergonhado!”, mas do que afirmou lembro mais ou menos isto: “Compreendo esse receio das palavras e da expressão! A experiência mística é algo incomunicável em si mesma, ou para utilizar, um termo leonardino, é experiêncial. É uma vivência única, individuada e solitária. A confissão pode ser entendida por muitos como partilha ou prova de crença num deus, profeta ou outro ente celeste, mas não deixa de ser uma emanação de antropocentrismo vergonhoso! A crença pode sugerir comunidade, comunidade de crentes, mas na sua perenidade é inviolável e incomunicável. O imenso equívoco que sentimos no que há de mais íntimo em nós é a demanda do mediador. A crença, que é dar realidade a algo, assiste à ciência, mas o que dela subsiste como experiência mística mantêm-se inviolável e não comunicável!”. Por momentos calou-se até dizer, entre dentes, e inseguro: “Não há ciência da experiência mística! Os iluminados... ” De novo volveu ao silêncio, mas já todos adivinhávamos o pensamento: “Os iluminados não têm vergonha de anunciar ao mundo o modo do convívio espiritual. Tratam os seres celestes por “tu”, sem recurso à alegoria, analogia ou metáfora. A superioridade que se atribuem e si próprios é um acto de soberba!”. Diria o João, gesticulando os braços. O silêncio foi interrompido pelo Ricardo, sempre mais atrevido e impaciente: “Tenho para mim, que a racionalidade revela sempre essa intimidade experiêncial. O pensamento, segundo os analíticos, ou a lógica, é a forma comunicável, ou se quisermos, visível, dessa experiência. Até os que se ficam pela razão raciocinante, ou o racionalismo ideológico, apresentam sinais da presença mística.”


“É interessante o que dizes”, interrompe o Ivo. “Não é Álvaro Ribeiro que define a palavra como acto de razão? E a razão como sendo o espírito humano (e assim sendo, não haverá distinção entre espírito no homem e espírito do homem!)? Todos acompanhávamos envolvidos o discorrer do Ivo e nem demos pela pausa que fez antes de concluir: “A ciência, saber mostrar por conceitos, não dispensa a experiência mística, porque se trata de uma expressão do espírito ou espiritual.”


Ricardo aproveitou a respiração do Ivo para rematar:”Toda a expressão, e toda a expressão é um acto de razão, revela sempre algo de místico e é uma forma de revelar, mostrar e esconder, o convívio do seu autor com os seres celestes?”


O Ivo, sempre de cigarro nos dedos, escutava, enquanto servia o vinho e cortava mais umas fatias de presunto. “É de Chaves?” inquire o João, enquanto compõe uma fatia no pão.


O diálogo derivou para as coisas gastronómicas. Os serões discorrem descontraídos em redor de pão e vinho. A conversa parecia ter perdido sentido do que mais importa, mas não deve ter sido exactamente assim. As memórias são difusas e o desvelar por palavras sem consistência periga a fidelidade da amizade aos confrades. Ainda soa no espírito de todos, a afirmação de Álvaro Ribeiro segundo a qual não se pode pensar sem acreditar em Deus para acentuar a necessidade da crença ao pensamento, à filosofia e à razão.


 

1 comentário:

  1. "No hay una ciencia de la experiencia mística", pero sin duda no hay ciencia que en si misma no sea una consagrada experiencia mística. Saludos desde Buenos Aires, muy valioso aporte.-

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